sábado, 18 de agosto de 2007

Por um pouco de boa vontade

O filme Gênio Indomável (título original em inglês Good Will Hunting / algo como ‘Em busca da Boa Vontade’) conta a história de Will Hunting, um faxineiro do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) dotado de um grande conhecimento e muita facilidade para matemática. Para poder beneficiar-se dos seus dons, ele deve superar o seu “medo de abandono e se tornar capaz de confiar e amar as pessoas que se importam com ele, [...] é a história de um jovem e sua luta tanto consigo mesmo quanto com seus relacionamentos pessoais, tentando superar seus problemas para poder abrir-se aos outros e utilizar-se de seu potencial intelectual incalculável.”
Eu não tive a oportunidade de assistir ao filme na íntegra, mas fiquei perplexo pelas cenas de terapia que foram exibidas em sala de aula. Enquanto a imagem do psicólogo que temos formada em nosso imaginário é aquela de um profissional que se mantém sentado, na maior parte do tempo em silêncio, ouvindo e analisando o interlocutor, para em um dado momento, proclamar um diagnóstico e aplicar algum método de tratamento, o filme nos mostra um psicólogo que interage física e verbalmente com o paciente, abrindo capítulos de sua vida pessoal, levando o paciente para fora do consultório, enfim, utilizando-se de uma vasta gama de recursos para estabelecer uma comunicação com aquele sujeito que busca ajudar.
Dos momentos da terapia que foram exibidos em aula, considerei três como sendo os mais marcantes: o momento em que o psicólogo Sean Maguire, interpretado por Robin William, restringe os movimentos de Hunting, ameaçando-o fisicamente caso voltasse a desonrar a memória de sua esposa; o momento em que Maguire leva Hunting para fora do consultório, sentando-se com ele na beira de um lago e desafiando suas defesas com suposições quanto à maneira que ele responderia a abordagens mais tradicionais de tratamento; e o momento em que Hunting desafia Maguire a dar uma nova chance ao amor.
Enquanto as interações físicas entre psicólogo e paciente exibidas no primeiro momento foram um tanto caricatas e usaram da liberdade criativa típica dos filmes, os outros dois momentos pareceram delinear uma prática bastante interessante que, se aplicada responsavelmente pode vir a gerar bons resultados. Ainda acredito que o psicólogo deve ser extremamente cuidadoso ao expor suas próprias experiências a um paciente e deve sim, buscar evitar fazê-lo para não comprometer o profissionalismo da relação; mas dada a subjetividade humana que torna cada caso único, é possível que seja necessário ‘ceder um pouco de si’ em troca do estabelecimento de um vínculo de confiança da parte do paciente para com o psicólogo.
O filme também mostra os supostos benefícios que um psicólogo pode herdar com uma abordagem mais aberta e íntima para com o paciente, no momento em que Maguire decide dar um novo rumo ao seus relacionamentos amorosos. Mais uma vez, acredito que embora seja interessante pensar em benefícios pró-terapeuta, não devemos perder o foco do tratamento, que deve ser voltado para o paciente, que comumente vem até o profissional buscando ajuda.
Nos foi mostrada, também, um pouco da história do paciente. Um jovem adulto, com dificuldades um pouco fora de contexto para a idade que aparentava, uma vez que no filme ele é interpretado por um ator de uns 30 anos de idade, que precisava finalizar algumas questões mal resolvidas para encontrar seu lugar no mundo. A rebeldia e os padrões de comportamento demonstrados nos laços de relacionamento que puderam ser percebidos nas cenas exibidas, nos remete a um comportamento adolescente, em um corpo de adulto com uma mente poderosa. Como muitos adolescentes, me pareceu que Hunting estava na verdade clamando por alguém que lhe estendesse a mão, sem olhá-lo de cima; por alguém disposto a ouvir suas demandas e que lhe oferecesse compreensão e confiança. Hunting buscava por um modelo de adulto maduro com um pouco de boa vontade, para poder ele mesmo amadurecer e tornar-se aquilo que naturalmente tendia a ser.
Não posso deixar de traçar um paralelo, ressaltando aquela que foi a lição mais importante que pude apreender do filme, com um caso da vida real – um estudo realizado na ocasião da elaboração da biografia de um certo cidadão. O estudo buscava mensurar informalmente, dada as limitações das circunstâncias, a validade do teste Rorschach. Um dos biógrafos, Victor Goertzel, era um psicólogo que havia defendido seu pós-doutorado com base no teste Rorschach.
O sujeito havia participado em duas ocasiões do teste, sempre com entusiasmo. Em uma das ocasiões levou 29 minutos para transmitir suas impressões sobre os 10 cartões. Já os resultados da análise posterior às suas respostas não foi digno de tanto entusiasmo.
Vários psicólogos utilizaram seus conhecimentos no teste para analisar as impressões que foram coletadas: os dois psicólogos que aplicaram o teste, um psicólogo que conhecia o sujeito, e outros sete especialistas no teste, que concordaram em fazer uma análise ‘as cegas’ – sem saber de quem se tratava.
Em favor do teste e dos métodos empregados, é necessário ressaltar a homogeneidade dos resultados apresentados por todos os psicólogos. Resultados que delineavam um sujeito com “[...]muitas das características comuns às pessoas que se suicidam. A possibilidade de um suicídio deve ser cuidadosamente levada em conta e aqueles responsáveis por ele devem ser alertados [...] as composições encontradas relativas à falta de acuidade perceptual e de pensamento sugerem a possibilidade de esquizofrenia... ele parece propenso a episódios freqüentes de depressão ou turbulências emocionais... ele processa informações de maneira desorganizada e aleatória... sua concepção de si mesmo não é bem desenvolvida e é provavelmente distorcida. Sua auto-imagem inclui muito mais aspectos negativos do que deveria ter.”
O sujeito do teste certamente não era esquizofrênico, nunca demonstrou nenhum sinal de ser suicida e nunca precisou de ninguém para tomar conta dele.
Outros achados do teste indicavam que “[...]ocorreram muitos problemas no pensamento, lógica e síntese através das categorias cognitivas que, em termos tanto de freqüência e tipo de distorção, são similares aos indivíduos que sofrem de esquizofrenia.”
O sujeito avaliado pelo método Rorschach era ninguém menos que Linus Pauling, casado, pai de quatro filhos, cientista e ativista ganhador do Prêmio Nobel de Química em 1954 e do Prêmio Nobel da Paz em 1962, pioneiro na aplicação dos conceitos da mecânica quântica na química. Ficou conhecido pelo seu vasto conhecimento nas áreas da química inorgânica, química orgânica, metalurgia, imunologia, anestesiologia, psicologia, oratória, armamentos nucleares, mecânica quântica e biologia molecular.
Várias hipóteses – ou desculpas – foram levantadas para explicar os motivos para as incoerências entre a personalidade delimitada pelo teste e a personalidade real que realizou o teste. Entre elas as de que Pauling havia lido sobre processos de brainstorming e havia relacionado tais processos com o teste, distorcendo os resultados, ou ainda, apelando para o conhecido ditado de que a linha limite entre a insanidade e a genialidade é de difícil compreensão. Defensores do teste também alegam que um único resultado fora do normal não invalida o teste.
Para mim, este caso relaciona-se com o filme pela própria abordagem totalmente contrária em um teste que visa interpretar a subjetividade do sujeito padronizando o método de interpretação. Até mesmo as palavras subjetividade e padronizando não ficam bem na mesma frase. Para aqueles que buscam uma resposta rápida às particularidades individuais da mente alheia, penso que os testes podem se tornar uma ferramenta muito enganadora, deixando transparecer mais sobre os temores e fraquezas daquele de analisa – ou julga – do que sobre a real personalidade daquele que é analisado.
Faltou boa vontade em abrir-se para uma mente brilhante. Faltou coragem para entrar em contato com um mundo que pode ser radicalmente diferente do seu, mas capaz de criar coisas maravilhosas.

Baseado em um trabalho para a disciplina de Fenomenologia.

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