terça-feira, 27 de novembro de 2007

A pequena Miss Sunshine

O filma A Pequena Miss Sunshine (Little Miss Sunshine, FOX Searchlight, 2006) foi exibido para os alunos da primeira turma do curso de Psicologia da Faculdade Atlântico Sul do Rio Grande, na manhã de Sábado, em 17 de novembro de 2007. Trata-se de uma comédia dramática, classificada por alguns como comédia de humor negro, que retrata a ocorrência de uma série de eventos marcantes em um curto espaço de tempo, no decorrer de apenas alguns dias, na vida de uma família norte-americana a beira da desintegração.
Sempre que possível gosto de tentar expandir os limites de aproveitamento didático dos trabalhos propostos, algumas vezes não consigo por falta de tempo, e algumas vezes não consigo por conta de minhas próprias limitações. Sendo este o último trabalho curricular que irei entregar este ano, quero tentar, sem evadir a pergunta inicial, fazer um exercício de imaginação semelhante àquele que o roteirista fez quando elaborou o filme e seus personagens. Desta maneira, quero trazer a personagem Olive mais uma vez a vida, no papel, para que ela possa relatar o seu ponto de vista sobre os eventos ocorridos durante o concurso Pequena Miss Sunshine.
Nas linhas a seguir, uma transcrição ....
Entra uma menina de sete anos de idade na sala, trazida pela mão por sua mãe, de porte normal para sua idade, cabelos loiros compridos, e grandes óculos de grau que dão a impressão de estarem se projetando para frente e além de seu rosto. A mãe da menina, Sra. Sheryl Hoover, tenta parecer descontraída, mas é possível perceber em seu rosto as feições e marcas de alguém que precisa lidar diariamente com tensões e conflitos bastante próprios.
Enquanto a garotinha percorre a sala com os olhos, após encarar brevemente o terapeuta, sua mãe explica que a trouxe para uma pequena avaliação, pois esta tem apresentado alguma dificuldade para dormir, “pedindo que eu e meu marido fiquemos acordados até tarde com ela contando histórias para dormir” – nas palavras da mãe.
Quando agendou a consulta, a Sra. Hoover comentou, por telefone, que acreditava que Olive poderia estar sofrendo com a morte do avô, pai de seu marido, com quem ela tinha uma relação bastante afetuosa e próxima. Segundo a Sra. Hoover, ele teria morrido após ingerir uma grande dose de heroína no quarto de um motel, durante uma viagem em família para um concurso de beleza infantil no qual Olive iria concorrer. O avô teria incentivado e preparado Olive para o concurso; ela, a mãe, não dispunha de tempo para tanto.
Antes de deixar da sala a Sra. Hoover voltou-se para sua filha Olive e lhe deixou uma série de recomendações, e finalizou dizendo que estaria de volta dentro de quarenta e cinco minutos, após passar em um fast-food para comprar o almoço da família. Imediatamente seu telefone celular tocou e ela atendeu, saindo sem se despedir do terapeuta, apenas fazendo um breve afago nos cabelos de Olive.
A menina olhou novamente para o terapeuta e, na seqüência, voltou os olhos para a uma mesa com papel e alguns lápis de colorir. Após fechar a porta, o terapeuta sorri gentilmente, se agacha até a altura da menina e pergunta se ela gostaria de fazer alguns desenhos enquanto conversa. Ela levanta os ombros, curvando levemente a cabeça para o lado, e responde com um “tudo bem” quase soprado.
O terapeuta se senta ao lado dela, enquanto ela separa algumas folhas e escolhe as cores que vai utilizar, e pergunta sobre o concurso de beleza do qual ela participou. Olive responde que o “concurso foi legal”, e começa a fazer alguns rabiscos em uma das folhas.
Percebendo que algo semelhante a uma família correndo atrás de um carro começava a aparecer nos rabiscos de Olive, o terapeuta pergunta se ela gostaria de lhe falar sobre a viagem até o concurso. Ele nota que Olive aperta com força o lápis de cor, parando momentaneamente de desenhar, para logo depois seguir fazendo os traços, agora depositando maior pressão no papel.
Enquanto desenha ela começa a falar:
“Minha mãe recebeu um telefonema da minha tia, dizendo que eu poderia participar do concurso Miss Sunshine. Eu fiquei muito feliz, sempre quis ser uma miss, como aquelas que via na tevê. Elas são bonitas, e todo mundo olha para elas e fica feliz.” - faz uma pequena pausa...
“Meu pai disse que a gente não podia ir. Ele era escritor, estava esperando um amigo dele ligar para falar sobre o livro dele. Mas meu avô Edwin, e a minha mãe, convenceram meu pai a ir. Ah! E o tio Frank também ajudou.”
“O tio Frank cortou os pulsos... Ele estava muito triste com o amigo dele.”
O terapeuta não interrompe, deixando que ela continue com a descrição dos eventos.
“Nós fomos no carro do meu pai, ele vendeu o carro quando voltamos da Califórnia. Eu gostava do carro porque cabia todo mundo nele, e era bonito e amarelo...” – O terapeuta percebe ela pintando o carro de amarelo. Olive faz uma pausa mais longa, e o terapeuta intervêm perguntando como foi viajar com “todo mundo” no carro.
“Ah... Eu fui escutando o cd que meu avô me deu, a música que eu ia dançar no concurso, sabe? Meu avô disse que para ser uma miss eu tinha que aprender bem direitinho a música. Quando a gente parou no posto o carro do meu pai estragou... Eles tiveram que passar correndo pra me pegar.” – o terapeuta pede esclarecimento quanto ao “correndo.”
“Correndo, sabe? Eu pulei pra dentro do carro, foi divertido... Depois todo mundo tinha que empurrar, ai a gente corria e me botavam dentro do carro.” - Olive esboça um sorriso, ainda voltada para a folha onde está desenhando.
O sorriso logo se apaga, e mais uma pausa se inicia no discurso dela. O terapeuta nota que ela risca com força a camisa de um das pessoas no desenho, e pergunta de quem se trata. “É meu avô,” – diz Olive – “ele morreu.” Segue mais uma breve pausa. “Mamãe chorou quando vovô morreu. O Dwayne disse para eu abraçar ela.” – o terapeuta pergunta se Dwayne é o irmão de Olive. “É, tipo, ele é filho da minha mãe. Ele tem outro papai... Ele não podia falar com ninguém porque queria ser piloto. Acho que ele pedia para que eu fizesse as coisas por ele.”
Olive muda de assunto: “Meu pai disse que se eu quisesse ser miss eu não podia comer sorvete. Mas eu gosto muito de sorvete. A miss disse que comia sorvete.” - faz uma pausa. “Meu avô me dava sorvete.” E reforça o traço que lembra um sorriso no desenho do avô.
O terapeuta nota uma pequena contração nos lábios de Olive, e pergunta como foi falar com a miss. “Eu não falei muito,” – responde Olive – “ela autografou uma foto pra mim e me disse que come sorvete de iogurte. Eu gosto muito de iogurte... Depois eu tinha que me arrumar pro desfile.”
“O Dwayne e o tio Frank não ficaram, mas minha mãe foi comigo para me ajudar. Tinha muitas meninas lá, e elas eram diferentes...” – já imaginando a resposta, o terapeuta pergunta como eram diferentes estas meninas. “Ah... Elas eram magras. E as mães delas ficavam correndo na volta e mexendo no cabelo delas e pintando o rosto delas...” – faz uma pausa – “minha mãe ajudou a arrumar meu cabelo.”
Olive sorri novamente... “Quando eu fui me apresentar no final, e ia dançar como tinha ensaiado com meu avô, o Dwayne e meu tio Frank vieram correndo perguntar se eu queria me ir.” – tira os óculos e olha mais uma vez pro terapeuta – “É claro que eu queria. A gente foi até lá para isso. Daí eu subi no palco e dancei igualzinho eu tinha ensaiado com meu avô. Meu pai tava assistindo e bateu palma para mim...”
“Mas tinha uma tia meio louca lá... Ela ficava fazendo careta pra mim, ai o moço disse que tinha acabado minha apresentação. Mas meu pai não deixou, ele subiu no palco pra dançar comigo. Depois minha mãe, o Dwayne e meu tio Frank também subiram e a gente dançou todo mundo junto...” – faz mais uma pausa.
“A gente teve que sair correndo... Mas o policial nos levou pra delegacia e disse que não era mais, nunca mais, para gente voltar.” – ela fala ainda sorrindo.
O terapeuta pergunta se isso não é ruim, se ela não gostaria de tentar ser miss outra vez. “Não...” – responde Olive – “...era divertido brincar de miss quando meu avô estava com a gente...” – o terapeuta pergunta como ficou a família depois que voltaram do concurso.
“Ah, o Dwayne agora fala. Ele lia histórias pra mim, que nem meu avô. Mas ele teve que ir embora, ele está estudando em outra cidade... O tio Frank também, ele agora dá aula de novo.” – o terapeuta pergunta sobre os pais de Olive – “Meu pai disse pra minha mãe que está procurando emprego. Mas ele fica muito brabo. Minha mãe tá sempre correndo. Ela diz que nunca consegue descansar... Eu queria que eles lessem história pra mim dormir...”
O relógio marca o fim da sessão. O terapeuta acompanha Olive até a porta, mas não há ninguém na sala de espera...


Bom, assim termino meu exercício de imaginação; procurei não pré-conceber nada e ir descrevendo a medida que me lembrava dos acontecimentos do filme, tentando filtrar tudo sob a ótica da pequena Olive, mas sendo relevante o suficiente para que o terapeuta fictício pudesse extrair algo da conversa e, ao mesmo tempo, para que eu tivesse subsídios que apontassem para os acontecimentos posteriores àqueles que foram exibidos ao final do concurso.
Acredito que a cadeia que eventos que culminou no concurso Miss Sunshine tenha caracterizado algo singular na vida daquela família, mas a julgar pelas personalidades do pai e da mãe, não sou capaz de conceber nenhuma mudança duradoura na trama de atitudes que compõe aquele lar.
Penso que tais acontecimentos possam ter promovido um amadurecimento no jovem Dwayne, e propelido uma retomada para o Frank... Também penso que aqueles eventos condensados em poucos dias tenham colaborado para um crescimento da pequena Olive, mas seu desenvolvimento é prejudicado pela sua situação familiar.
Assim como Freud, acredito na capacidade infantil de lidar relativamente bem com os traumas provocados pela estupidez dos adultos, que acabam transferindo para a criança suas frustrações cotidianas provenientes do seu próprio modo cristalizado de encarar o mundo. Como na cena do sorvete, torço para que todas as Olives continuem optando por aquilo que realmente querem fazer, pelas coisas que gostam, e para que não se deixem envolver nas neuroses de adultos mal resolvidos e tenham suas infâncias abreviadas por isso.

Baseado em um trabalho da disciplina de Teoria Psicanalítica.

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