quinta-feira, 13 de março de 2008

Debate: Noam Chomsky vs. Michel Foucault

Observação importante: procurei preservar e ser fiel a linguagem utilizada por ambos os debatentes, sem fazer correções de estilo e usando as palavras e termos mais próximos que me foram possíveis. Quem conhece inglês irá notar diferenças entre a minha tradução das frases do Michel Foucault e a legenda em inglês que se encontra nos vídeos. Isto ocorre porque, sendo o francês uma língua latina, algumas orações são melhor traduzidas diretamente do francês para o português, do que do francês para o inglês. Não estranhem a repetição de algumas palavras, uma vez que isso é uma ocorrência normal no discurso oral.



Primeira Parte


Noam Chomsky: Bom, me deixe começar referindo a algo que nós já discutimos, que é se está correto, como eu acredito que esteja, que um elemento fundamental da natureza humana é a necessidade por trabalho criativo, por investigações criativas, por criações livres sem os efeitos limitantes arbitrários de instituições coercitivas.
Então, é claro, o que vem a seguir é que uma sociedade decente deve maximizar as possibilidades para que esta característica fundamental humana se realize. Isto significa tentar superar os elementos de repressão e opressão e destruição que existem em todas as sociedades existentes, a nossa por exemplo, na forma de um resíduo histórico.
Agora, um sistema de associações livres federal e descentralizado, que incorpore instituições econômicas assim como instituições sociais, ao qual eu me refiro como anarco-sindicalismo e que parece ser, para mim, a forma apropriada de organização social para uma sociedade tecnológica avançada, na qual seres humanos não precisem ser forçados a uma posição de ferramentas, de engrenagens em uma máquina, na qual a necessidade criativa, que eu penso ser intrínseca à natureza humana, poderá, de fato, se realizar, da maneira que isso irá acontecer, eu não sei, mas tenho certeza que irá.

Michel Foucault: Minha abordagem é bem menos avançada que a do Sr. Chomsky. Admito não ser capaz de definir, nem mesmo - por motivos ainda mais fortes - propor, um modelo social ideal para o funcionamento da nossa sociedade científica ou tecnológica.
Por outro lado, a tarefa mais urgente, imediata, antes que qualquer outra coisa, é considerar a atitude de que estamos acostumados a pensar, pelo menos em nossa sociedade Européia, que o poder está localizado nas mãos do governo e é exercido por algumas instituições em particular, tais como os governos locais, a polícia, o exército. Estas instituições transmitem as ordem, as aplicam e punem as pessoas que não obedecem.
Mas, penso eu, que o poder político também é exercido por um certo número de outras instituições que não parecem ter nada em comum com o poder político, o qual parece ser independente mas que na verdade não é. Todos nós sabemos que as universidades e todo o sistema educacional, que aparentemente deveria distribuir o saber, serve, na verdade, para manter o poder nas mãos de uma certa classe social e para excluir as demais classes sociais deste instrumento de poder. A Psiquiatria, por exemplo, que em aparência parece se destinar ao bem da humanidade e o conhecimento dos psiquiatras. A Psiquiatria também é uma maneira de impor o poder político a um determinado grupo social. A Justiça também.
Então me parece que a real tarefa política atual em uma sociedade como a nossa é criticar os trabalhos das instituições que aparentam tanto ser neutras quanto independentes; é criticar e atacar estas instituições, de tal maneira que a violência política que sempre foi exercida e obscurecida por meio destas instituições, surgisse para que assim pudéssemos combatê-la.
Se nós queremos o direito de definir a identidade e a fórmula de nossa sociedade futura, sem criticar todas as formas de violência política que são exercidas em nossa sociedade, corremos o risco de que elas se reconstruam, mesmo que através de uma forma aparentemente nobre, como o anarco-sindicalismo.

Noam Chomsky: Eu certamente vou concordar com isso, não apenas em teoria, mas também em ação, que significa que existem duas tarefas intelectuais, uma, a qual eu estava discutindo, que trata de criar a visão de uma futura sociedade justa, e outra tarefa, que é a de entender com bastante clareza, a natureza do poder e da opressão, do terror e da destruição, na nossa própria sociedade. E isto certamente inclui as instituições que você menciou, assim como outras instituições centrais de qualquer sociedade industrial, como as instituições econômicas, comerciais e financeiras, e em particular, no período por vir, as grandes corporações multinacionais, que - falando nisso - não estão muito longe de nós fisicamente esta noite. Estas são as instituições básicas de opressão, coerção e domínio autocrático que aparentam ser neutras, pois afirmam: "Bem,estamos sujeitas à democracia do mercado."
Ainda assim, eu penso, que seria uma grande pena perder, ou pôr de lado inteiramente, a tarefa, de certo modo mais abstrata e filosófica se você preferir, de tentar extrair as conexões entre o conceito de natureza humana, que dá inteira abordagem à liberdade, dignidade, criatividade e outras características fundamentais humanas, e relacionar este conceito a algumas noções de estrutura social nas quais estas propriedades poderiam ser realizadas, nas quais uma vida humana significativa poderia ocorrer.
De fato, se estamos pensando em transformação social ou revolução social, seria absurdo tentar prever com exatidão o ponto que esperamos alcançar. Contudo, nós devemos saber algo sobre para onde pensamos estar indo. E tal teoria pode ser relevante para nós.

Fim da primeira parte.



Segunda Parte


Michel Foucault: Sim, mas não haverá um risco aí? Se você diz que existe uma certa natureza humana, que esta natureza humana, na sociedade atual, não recebeu os direitos e as possibilidades que lhe permitirão se realizar - foi isso que você disse, acredito eu.
E pode você admitir que não há risco em definir esta natureza humana - ao mesmo tempo ideal e real, e que tem sido escondida e reprimida até agora - em termos empregados pela nossa socidade, de nossa civilização, de nossa cultura?
O problema é a noção de natureza humana..., você entende que nós não temos uma noção exata que especifique o que é natureza humana? Não existe aí um risco de sermos levados ao erro? Você sabe que Mao Tsé-Tung fala da distinção entre a natureza humana burguesa e a natureza humana proletária? Para ele, elas não são a mesma coisa.

Noam Chomsky: Bom, eu não acho que no domínio da ação política intelectual, que é o domínio onde estamos tentando construir uma visão de uma sociedade justa e livre com base em alguma noção de natureza humana, neste domínio nós nos deparamos com exatamente o mesmo problema que nos deparamos na ação política imediata. Por exemplo, para ser bem concreto, muita da minha própria atividade tem haver, na verdade, com a Guerra do Vietnam; e uma boa parcela da minha energia é empregada no questão da desobediência civil.
Então, a desobediência civil, nos Estados Unidos, é uma ação tomada em face a consideráveis incertezas quanto aos seus efeitos. Por exemplo, alguém poderia dizer que ela pode ameaçar a ordem social de maneiras que podem vir a trazer o fascismo, o que seria muito ruim para a América, para o Vietnam, para a Holanda e para todo o resto.
Então, existe um perigo, que é um risco assumido com a tomada de ação neste ato concreto, e existe um grande perigo em não tomar esta ação... Que se não for tomada, a sociedade na Indochina será transformada em retalhos pelo poderio Americano. E, em face a estas incertezas, cada um precisa escolher um curso de ação.
Similarmente, no domínio intelectual, eu me deparo com as incertezas que você corretamente trouxe... O nosso conceito de natureza humana é certamente limitado, parcial, socialmente condicionado e manchado pelos nossos próprios defeitos de caráter e pelos próprios defeitos e limitações da cultura intelectual em que vivemos. E ainda assim, é importante que nós tenhamos alguma direção, para que saibamos quais são os objetivos impossíveis que estamos tentando alcançar, se esperamos alcançar alguns dos objetivos possíveis. Isso significa que temos que ser arrogantes o suficiente para especular e tentar criar teorias sociais baseadas no conhecimento parcial, enquanto permanecemos muito abertos para a forte possibilidade, de fato para a avassaladora probabilidade, de que estejamos na verdade muito longe do ideal.

Michel Foucault: Mas me parece, de qualquer modo, que a noção de justiça, em si, funciona no interior da sociedade de classes, como uma reivindicação da parte da classe oprimida e como uma justificação da parte da classe opressora.

Noam Chomsky: [interrompendo] Eu não concordo com isso...

Michel Foucault: Em uma sociedade sem classes, eu não estou certo de que ainda faríamos uso desta noção de justiça.

Noam Chomsky: Eu.. Bem, aqui eu realmente discordo. Eu penso que existe algum tipo de base absoluta - se você me pressionar demais eu vou ter problemas porque eu não posso descrevê-las - mas algum tipo de base absoluta, a qual reside em última instância nas qualidade humanas, em termos de nossa verdadeira noção de justiça está apoiada. Eu acho que nossos sistemas de justiça existentes são... Eu acho que é muito precipitado caracterizar nossos sistemas de justiça existentes como meros sistemas de opressão de classes. Eu não acho que eles sejam isso, eu acho que eles incorporam sistemas de opressão de classes, e que eles incorporam elementos de outros tipos de opressão.
Mas eles incorporam um grupo de conceitos humanos de valor, que são verdadeiros [levantando os ombros, com uma rápida risadinha], de justiça, de decência, de amor, de simpatia, de bondade e assim por diante, que eu penso serem verdadeiros.

Michel Foucault: Bem, eu terei tempo para responder? Quanto?

Mediador: Dois minutos.

Michel Foucalt: Então eu diria que isto é injusto! [risos]


Mediador: Absolutamente!

Michel Foucault: Não, mas eu não quero responder em tão pouco tempo. Eu direi simplesmente o seguinte: Contrário ao que você pensa, você não pode me impedir de acreditar que estas noções de natureza humana, de bondade, de justiça, de senso humano, de realização da essência do ser humano, são todas noções e conceitos que foram formadas no seio de nossa civilização, com o nosso tipo de saber, com a nossa forma de filosofia, e que por conseqüência são parte de nosso sistema de classes; e você não pode, por mais triste que seja, usar estas noções para descrever ou justificar uma luta que deve - que deveria, em princípio - derrubar os fundamentos de nossa sociedade.
Esta é uma extrapolação para a qual eu não consigo encontrar justificação histórica.

Fim da segunda parte.

Links para os vídeos
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Parte 01 / Parte 02

4 comentários:

Ana disse...

olha só!! que pena que não pudeste ir à aula inaugural da educação ambiental com o professor Marcos Reigota... O discurso dele contemplava justamente a primeira parte dessa entrevista - e também um pouco da segunda, dentro do tema que abordou.
Vou indo assim:
Em primeiro lugar, ele salientou o impacto que as políticas públicas têm na construção da ciência - coisa visível - mas contando um fato marcante de sua própria história. Olha só, lembra do que eu disse na aula sobre os saberes outros que a academia não valoriza: Ele conta que era doutorando do CNPq, e no dia em que fazia a defesa de sua tese, em Louvain-Bélgica, o fernando Collor assumia a presidência aqui. Bueno, uma das primeiras coisas que o Collor fez, ao assumir, foi extinguir o CNPq e a CAPES. O Réigota então ficou na Bélgica, sem passagem para voltar, sem conseguir emprego - pois sua situação beirava a ilegalidade - e consegui trabalo, pouso e alimentação trabalhando como jardineiro em um monastério. Passou-se bom tempo até que conseguisse voltar ao Brasil.
Isso é um ponto. Deste ele chega até o questionamento sobre a famigerada produtividade exigida pela CAPES para avaliar a "qualidade" de um pesquisador. Como ele disse, teve lá na Bélgica professores que publicaram uns poucos livros, mas que romperam paradigmas. Enquanto isso, o dinheiro público das agências de pesquisa federais são distribuídos aqui no Brasil para "ditos" pesquisadores que produzem em "avalanche", com baixíssima qualidade, e repercussão menor ainda. E a questão levantada por ele e pelo público, em sua maioria alunos do pós, era como realizar a mudança desse panorama - ou desse paradigma! - de dentro do sistema?!
Eu mesma ia tentar o doutorado em 2007. desisti porque não tinha publicações suficientes - o que eu achava intuitivamente e foi-me confirmado pela professora com quem eu queria me orientar...
Quando Foucault fala sobre a Psiquiatria, fala sobre uma grande angústia que me fez dar um tempo em relação ao trabalho com dependentes químicos: qual o serviço que eu estava fazendo? Não faço apologia às drogas, de maneira nenhuma, mas de que adianta tratar e tratar sem parar e avaliar o que esse fenômeno de explosão de seres humanos com essa necessidade desesperada de estarem intoxicados frente à vida?!
desabafos...
E, como disse um colega na aula de hoje, um alento vem de reigota, de que não somos paranóicos, não sofremos da síndrome de perseguição discente - há sim, uma força, ou uma base absoluta, como diz Chomsky, mas não é pelo bem comum não, rsrsrs - pode até ser que haja essa também, mas...
E, finalmente, me vieram teus questionamentos sobre ética X moral - dentro do debate deles sobre justiça...

Ana disse...

Rsrs, desculpa, tens uns errinhos aí, mas é que eu fui escrevendo assim, sem editar, rsrssr...
Ah, a aula foi gravada, vou ver se consigo emprestada adiante para mostrar a vocês em aula...

Psicólogo Cláudio Drews disse...

A parte mais gratificante de fazer esta tradução em particular foi ter percebido que mesmo dois monstros intelectuais como Foucault e Chomsky - podemos até discordar deles, mas não podemos negar que são dois teóricos de uma profundidade enorme - também cometem erros comuns e humanos ao se utilizar da linguagem num contexto mais informal e limitado, como no caso deste debate limitado em tempo e em diferenças de língua. (:

Ana disse...

só para constar: os errinhos aos quais me referi forma os meus mesmos, viu!!! ;)