sexta-feira, 14 de março de 2008

Os valores morais e a Ética

Quero debater sobre ética e o papel dos “valores”, mas desta fez não irei fazer uso de referencial bibliográfico. Mesmo correndo o risco de errar feio, quero utilizar a argumentação e o pensamento lógico-racional, para chegar a uma conclusão.
Ouvimos falar em valores. Que valores são estes? Seriam valores morais? De onde vêm os valores morais? Nas aulas de Psicanálise vimos que estes são introjetados no indivíduo durante o Complexo de Édipo, segundo Freud. Estes valores (morais) são introjetados no indivíduo arbitrariamente por seus pais ou provedores, resultantes das crenças e dos valores que estes trazem consigo e que, por sua vez, também lhes foram impostos. Por isso, normalmente não escolhemos uma religião, sendo esta determinada pelos nossos pais, assim é com o time de futebol para o qual iremos torcer, se iremos ter uma visão mais tolerante ou mais autoritária para com os outros, se iremos dar mais valor a demonstrações de afeto ou se manteremos uma maior distância emocional. Existem várias exceções, no sentido de que, durante a formação destes valores, o contato com a sociedade em todas as suas manifestações, altere de algum modo aquilo que nossos pais nos ensinam em palavras, atitudes e gestos, mas os pais ainda são a base daquilo que somos feitos interna e externamente.
Tomar uma decisão baseada em tais valores nada mais é do que seguir a moral vigente. A moral é um conjunto de normas e regras estabelecidas por um agrupamento social em um determinado tempo, ou época. A moral é influenciada pelas crenças religiosas, regras políticas, leis e, em nossa sociedade moderna, até mesmo pela mídia de massa, e não é uma moral escolhida por nós. Antes do que isso, é uma moral que já vem pronta e cabe aos pais estabelecerem um juízo crítico sobre ela.
Um exemplo disso que me vem em mente são pais que botam músicas de letras com forte conteúdo sexual para seus filhos pequenos escutar, músicas de bandas populares como "É o tchan" e outras. Se forem inquiridos sobre o motivo que os leva a fazer isso, provavelmente responderão que se tratam de músicas alegres. Se forem inquiridos sobre as letras, provavelmente dirão que as crianças não entendem ou não têm malícia. Seria este um julgamento ético? É possível argumentar que os valores deste pais, introjetados ao longo de suas vidas, formam um entendimento moral que lhes permite um julgamento ético apenas até o ponto de que, se na televisão o programa Domingo Legal mostra crianças dançando tais músicas, então este é um comportamento aceitável. Seus valores morais não lhes permite ver as conseqüências da exposição precoce das crianças a esse tipo de música.
O mesmo pode ser dito sobre um indivíduo que se criou em uma família militar, no qual foram introjetados valores com base na moral militar. Moral esta que prega a obediência cega a cadeia de comando. Onde há obediência cega, não há julgamento de valor... Ou há? Pode se argumentar que o julgamento de valor, que a ética de um indivíduo criado e que vive neste contexto, vai apenas até sua decisão de sempre obedecer. Decisão esta que foi influenciada pelos seus valores morais.
Estar em conformidade com a moral é ser ético? O soldado que pilotava o avião Enola Gay e que jogou a bomba atômica sobre Hiroshima matando milhares de pessoas instantaneamente agiu conforme a moral militar, obedecendo às ordens dos seus superiores.
Após ver o que havia feito, seu julgamento ético se limitou a um valor de "dever cumprido." Ainda hoje este senhor acredita ter feito um bem para o povo americano e, pasmem, para o povo japonês. Seu neto é hoje um comandante de um esquadrão de bombardeiros. Em contrapartida, alguns historiadores e críticos afirmam que a rendição do Japão era eminente quando as bombas foram lançadas, e que estas serviram apenas para demonstrar à União Soviética do que os americanos eram capazes. Ainda que isso não seja totalmente verdade, a morte massiva de civis não pode ser justificada dentro do contexto de guerras daquela época, nem no contexto de guerras atuais.
Se nossos julgamentos éticos são sempre contaminados pelos nossos valores morais, então é possível ser verdadeiramente ético e fugir do viés de nossa moral imposta pela sociedade?
Talvez a busca pela ética seja como a busca por uma verdade final. Uma ambição que pode estar além das nossas capacidades humanas, sejam elas físicas, tecnológicas ou filosóficas.
Mas assim como podemos utilizar o microscópio para observar a estrutura da matéria e o telescópio para invalidar o geocentrismo, podemos usar a Filosofia para desconstruir nossas crenças, nossos valores morais e para aperfeiçoar nossos julgamentos morais, nossa ética.
A Filosofia, embora seja uma ciência humana, conta com métodos lógicos e analíticos que fornecem ferramentas ou meios para que compreendamos melhor a maneira pela qual chegamos a uma certa conclusão, que nos leva a tomar uma determinada atitude, motivados por nossas crenças. Tendo capacidade para analisar este processo, podemos fazer um juízo crítico sobre nossas crenças e decidir se realmente elas são aquelas que consideramos mais adequadas para a nossa realidade e os nossos objetivos como pessoa.
Por meio da Filosofia podemos gozar mais amplamente das possibilidades de nossa racionalidade, pois livramos a racionalidade dos vieses que causam distorções em nossos julgamentos. Aristóteles dizia que a ética não pode ser fruto da coerção, mas da ação tomada de forma consciente, fruto de uma escolha onde houve uma reflexão. Aquilo que fazemos por mera obrigação é imposto, mas há a escolha por obedecer as regras ou sofrer o risco de arcar com as conseqüências. Desta maneira, todos nós utilizamos a ética quando fazemos estas escolhas, mesmo que seja a escolha de sempre obedecer. Porém, o que vai determinar se algo é ético ou anti-ético, são os resultados de nossas escolhas. Digo mais, o que vai determinar se algo é ético ou anti-ético, vai além do contexto moral em que o indivíduo está inserido, como mostram os dois casos que citei acima. Ainda que sejamos incapazes de ver a falha em nossa ética, isso não nos torna mais éticos, apenas mais ignorantes.
A moral é tão imperfeita que varia de uma sociedade para outra.
Um exemplo bem claro disso é o questionamento da validade dos direitos universais do homem por parte do mundo islâmico, incluindo ai, grupos onde existe o costume de se mutilar as mulheres cortando seus genitálias para que estas sejam incapazes de sentir prazer, ou sintam menos prazer, durante as relações sexuais. O julgamento ético que pode ser realizado pelos integrantes destes grupos vai até onde suas crenças lhes permitam racionalizar. Mas poderá este julgamento passar pelo crivo de uma argumentação lógico-racional?
É neste ponto em que a ética, como busca por uma conduta universal mais apropriada, supera as crenças individuais. E isso ocorre porque temos os meios filosóficos para tanto.
Não podemos dizer que acreditamos na Matemática por que é um valor moral que adquirimos ao longo de nossa vida. Isso porque a Matemática possui rigor científico e é exata. Ainda que se use números diferentes dos algarismos arábicos (na verdade hindus) em algumas partes do mundo, qualquer expressão matemática pode ser convertida de um sistema para o outro. Podemos realizar as mesmas contas em números binários, hexadecimais, arábicos, chineses e romanos (com exceção da carência do zero por este último para a execução de contas mais complexas). A Matemática permite isso por gozar de uma lógica forte. Não é a lógica do "se você me der um ponta pé eu te dou uma facada" ou "se eu não posso explicar este fenômeno é porque sua causa é divina."
E assim também é a Filosofia. A Filosofia evoluiu durante milênios para se livrar dos vieses comuns a que estamos submetidos, e este processo de evolução continua até os dias de hoje, embora já tenhamos chegado a um patamar onde ela nos permite desconstruir nossas crenças, os valores que nos são arbitrariamente introjetados, com bastante eficácia.
O risco de se obter um resultado anti-ético ao tomar uma decisão qualquer sem recorrer ao crivo filosófico é muito grande.
Pessoalmente eu acredito que este seja o principal motivo pelo qual o ensino de Filosofia é um dos primeiros a ser banidos em governos autoritários, tais como ditaduras, e também é um motivo para que o ensino de Filosofia para as massas seja tão pouco incentivado. Ensinam as crianças a fazer contas, até mesmo as contas mais abstratas, ensinam Física, ensinam Química e Biologia.. Mas quando entra o ensino da História, do Direito, da "Moral e Cívica" (se não me engano este é o componente curricular que veio a substituir a Filosofia nos anos da ditadura), e mesmo quando ensinam Filosofia, muita coisa é deixada de lado. Por que?
Pensem bem, um político do nosso tempo, seja ele qual for, seria capaz de angariar votos de uma população habilitada a fazer uma análise de seu discurso? As forças armadas poderiam ser capazes de impor uma obediência cega de maneira crível a um indivíduo que questiona os pressupostos, os fins e os meios? Viveríamos num mundo capitalista onde a massa proletária se contenta com sua situação de produzir para que o detentor do capital goze os frutos, e faz isso motivada por crenças tais como "sou pobre mas sou honesto", ou "o trabalho (qualquer trabalho) dignifica o homem"? Existiriam as religiões, que são altamente dependentes do fator econômico, num mundo onde as pessoas questionassem seus motivos pessoais para se dizerem praticantes desta ou daquela religião mesmo sem seguir suas regras e acreditar em seus dogmas (por exemplo, a proibição de métodos anticoncepcionais (regra) e a infalibilidade papal (dogma) no catolicismo)?
Acredito que a respostas a todas as perguntas acima é não. As próprias bases de nossa sociedade não sobreviveram a uma massa de pessoas educadas de forma correta na Filosofia. E não estou dizendo que todos tenham que ser PhDs em Filosofia, mas estou dizendo que limitar nossos conhecimentos ao estudo de resumos da visão e conceitos dos filósofos é a mesma coisa do que limitar nossos conceitos as 4 operações básicas da matemática ou aos princípios da física newtoniana.
Esta é a minha visão sobre os "valores morais" em relação a ética: enquanto a moral estabelecida é útil para manter a coesão de agrupamentos humanos, ela não nos torna, necessariamente, pessoas melhores e éticas. Se formos obedecer e seguir aquilo que está pré-estabelecido em uma sociedade baseada no consumo e interesses de capital, estaremos sujeitos a uma miríade de ações morais, mas antiéticas, no decorrer de nossas vidas.

Indicação de leitura: IBSEN, Henrik. O Inimigo do Povo. L&PM Pocket.

3 comentários:

Unknown disse...

Boa tarde,
Li seu texto e adorei, gostaria de saber se posso utilizá-lo como instrumento para debate em um curso de especialização em ética, fazendo com que os alunos possam refletir e se posicionar perante as informações nele contidas.
Obrigada.

Unknown disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Psicólogo Cláudio Drews disse...

Boa tarde Karine!

Podes usar sim os textos. Removi um dos comentários para proteger o teu endereço de e-mail.