segunda-feira, 7 de abril de 2008

O crânio da discórdia

Acredito que me deparei com o poema "Lines inscribed upon a cup formed from a skull", de Lord Byron, navegando pela internet, quando eu tinha cerca de 18 ou 19 anos, idade em que eu já deveria ter travado contato com as obras da língua portuguesa que são exigidas no vestibular, entre elas a obra de Castro Alves, Espumas Flutuantes, na qual foi publicada a tradução deste poema sob o título de "A uma taça feita de um crânio humano"; contudo só fui ler tal tradução agora, quase 10 anos depois.
Fiquei um tanto surpreso - ou não? - com a tradução...

Original, em inglês:
Lines Inscribed Upon a Cup Formed From a Skull

Start not—nor deem my spirit fled:
In me behold the only skull,
From which, unlike a living head,
Whatever flows is never dull.

I lived, I loved, I quaff’d, like thee:
I died: let earth my bones resign;
Fill up—thou canst not injure me;
The worm hath fouler lips than thine.

Better to hold the sparkling grape,
Than nurse the earth-worm’s slimy brood;
And circle in the goblet’s shape
The drink of Gods, than reptile’s food.

Where once my wit, perchance, hath shone,
In aid of others’ let me shine;
And when, alas! our brains are gone,
What nobler substitute than wine?

Quaff while thou canst: another race,
When thou and thine, like me, are sped,
May rescue thee from earth’s embrace,
And rhyme and revel with the dead.

Why not? since through life’s little day
Our heads such sad effects produce;
Redeem’d from worms and wasting clay,
This chance is theirs, to be of use.

Tradução de Castro Alves, com publicado em Espumas Flutuantes:
A uma taça feita de um crânio humano

Não recues! De mim não foi-se o espírito...
Em mim verás — pobre caveira fria —
Único crânio que, ao invés dos vivos,
Só derrama alegria.

Vivi! amei! bebi qual tu: Na morte
Arrancaram da terra os ossos meus.
Não me insultes! empina-me!... que a larva
Tem beijos mais sombrios do que os teus.

Mais val guardar o sumo da parreira
Do que ao verme do chão ser pasto vil;
—Taça — levar dos Deuses a bebida,
Que o pasto do reptil.

Que este vaso, onde o espírito brilhava,
Vá nos outros o espírito acender.
Ai! Quando um crânio já não tem mais cérebro
... Podeis de vinho o encher!

Bebe, enquanto inda é tempo! Uma outra raça,
Quando tu e os teus fordes nos fossos,
Pode do abraço te livrar da terra,
E ébria folgando profanar teus ossos.
E por que não? Se no correr da vida

Tanto mal, tanta dor ai repousa?
É bom fugindo à podridão do lado
Servir na morte enfim p'ra alguma coisa!...

Bom, o primeiro problema que notei, logo que bati os olhos na tradução, foi o título. No original está escrito - ou sou eu que interpreto dessa maneira - "linhas inscritas em uma taça feita de um crânio", na tradução está escrito "a uma taça feita de um crânio humano". Para mim há uma diferença significante entre os dois títulos. No original entendo que se trata de algo que está escrito ou que foi escrito em um crânio usado como taça. Isso por que a palavra inscribed significa, entre outras coisas, gravar algo sobre uma superfície. A tradução dá a entender como se o poema fosse dedicado ao crânio.

No primeiro verso, no original, entendo que o autor quis dizer o seguinte:
Não comece - nem considere que meu espírito deixou-me (fled, no sentido de que o espírito abandonou, fugiu, deixou o corpo, como alguém que abandona o barco ou foge de uma situação):
Em mim contempla-se o único crânio, (contempla-se pois, mais do que apenas ver, a palavra behold também tem conotação de possuir, de estar incluso - be hold)
Do qual, diferente de uma cabeça viva,
O que flui jamais é enfadonho (ou monótono - dull).
E a tradução diz o seguinte:
Não recues! De mim não foi-se o espírito...
Em mim verás — pobre caveira fria —
Único crânio que, ao invés dos vivos,
Só derrama alegria.
As diferenças, ao meu ver, são marcantes. No original em inglês o autor diz possuir um crânio do qual jamais saem coisas enfadonhas, estaria ele se referindo meramente à taça da qual flui o vinho ou ao seu próprio crânio, de poeta? A ambigüidade pode ser refutada pela primeira e pela terceira linha, mas não penso que seja o caso, pois o espírito, especialmente na fantasia romântica, pode permanecer no corpo do morto, ou daquele que parece morto. Na tradução de Castro Alves, não só a ambigüidade é obscurecida, quanto elementos são acrescentados, como a idéia de "não recue", que claramente se opõe à idéia de "não comece" (um é recuo e o outro é avanço em um diálogo) e a "pobre caveira fria". Na segunda linha a tradução dá mais a entender que o autor está falando para a caveira ver nele a si mesma em sua condição de receptáculo de vinho do que ao poeta propriamente dito.

No segundo verso entendo:
Eu vivi, eu amei, eu sorvi, como você (como a ti, para ficar bonitinho? - quaff - aquele que engole seus pecados, ou a conseqüências de suas ações, por exemplo):
Eu morri: que a terra deixe meus ossos resignarem;
Encha-me - não podes ferir-me;
O verme possui lábios mais dissimulados que os teus.
E Castro Alves traduz como:
Vivi! amei! bebi qual tu: Na morte
Arrancaram da terra os ossos meus.
Não me insultes! empina-me!... que a larva
Tem beijos mais sombrios do que os teus. (aqui, a escolha de sombrios, para fouler, foi bem feita, pois significa tanto nojentos quanto dissimulados, então foi uma escolha interessante... mas prefiro dissimulados, dados os outros poemas do Byron que já li)
Mais uma vez elementos são acrescentados, mas desta vez prejudicam a narrativa no sentido de que Byron, no original, não é explícito sobre ser exumado. Também sinto a falta de uma melhor tradução, tanto da parte de Alves, quanto da minha parte, para a primeira linha, uma vez que desconheço - ou não lembro agora - uma palavra a altura de quaff em português. Embora a escolha de sombrios tenha sido interessante, penso que dissimulados seria mais fiel para os propósitos narrativos...

No terceiro verso, eis minha interpretação:
Melhor conter a uva fermentada, (usei fermentada, pois borbulhante daria a idéia de champanhe na tradução de sparkling)
Do que nutrir a gosmenta ninfa do verme-da-terra; (aqui uso ninfa no contexto da biologia para substituir a palavra brood, talvez não seja cientificamente exata, mas... Nutrir também não faz justiça ao sentido, uma vez que seria mais cuidar, como se cuida na maternidade, por exemplo)
E circular, na forma de cálice, (goblet significa qualquer taça com uma base, em especial os cálices eucarísticos... acrescentei as vírgulas pois entendo que se faz circular algo - a bebida - por meio do...)
A bebida dos Deuses, do que alimento dos répteis.
E Alves traduz como:
Mais val guardar o sumo da parreira
Do que ao verme do chão ser pasto vil;
—Taça — levar dos Deuses a bebida,
Que o pasto do reptil.
Taça! Levar dos Deuses a bebida! - Seria isso um homem de neandertal ordenando a um copo que levasse a cachaça dos Deuses? E qual é a fixação com pasto?

O quarto verso, leio assim:
Onde uma vez minha inteligência, por sorte, brilhou,
Em favor dos outros me é permitido brilhar;
E quando, por azar! nossos cérebros se forem, (alas!, mais do que uma simples exclamação, significa infortúnio)
Qual substituto mais nobre que o vinho?
Mas Castro Alves traduz assim:
Que este vaso, onde o espírito brilhava,
Vá nos outros o espírito acender.
Ai! Quando um crânio já não tem mais cérebro
... Podeis de vinho o encher!
Gostei do "vá nos outros o espírito acender", mas no original, "in aid of others’ let me shine", com o apostrofe após o "s" que sugere um "is", entendo que é permitido algo a alguém. Quanto as outras duas linhas, a terceira e a quarta, vou me abster de comentar.

O quinto verso:
Engole enquanto podes: mais uma corrida,
Quando tu e o que é teu, como eu, forem expedidos, (preferi o que é teu ao invés de os teus, para thine, por entender que havia um sentido mais pessoal à pessoa... e sped tem conotação de acelerar, velocidade e tempo passado, não encontrei relação com fosso algum... ver também hasten, pensei acrescentando um "assim" antes do "como eu", mas deixei como estava em favor daquilo que entendo como propósito da narrativa)
Podem resgatar-te do abraço da terra,
E rimar e deleitar-se com os mortos.
E Castro Alves diz que é assim:
Bebe, enquanto inda é tempo! Uma outra raça,
Quando tu e os teus fordes nos fossos,
Pode do abraço te livrar da terra,
E ébria folgando profanar teus ossos.
Eu gostei do "bebe, enquanto inda é tempo!", pois faz jus ao quaff, mas ele se perdeu quando usou "uma outra raça." Podia ter usado páreo ou qualquer outro sinônimo para corrida. A terceira linha parece saída do script do Mestre Yoda, e a quarta não parece fazer muito sentido.

Por fim, o último verso, que traduzo assim:
Por que não? já que ao longo do pequeno dia da vida
Nossas cabeças produzem tais efeitos tristes; (eu adaptaria como algo assim:"Nossas cabeças produzem efeitos tão trágicos"...)
Redimido dos vermes e da derradeira argila, (redimido, e não resgatado, pelo contexto romântico e pela própria palavra escolhida, redeem)
Esta minha sorte é pr'eles, de ser útil.
E que Alvez traduz assim:
E por que não? Se no correr da vida
Tanto mal, tanta dor ai repousa?
É bom fugindo à podridão do lado
Servir na morte enfim p'ra alguma coisa!...
Para mim, o principal problema neste último verso, foi a falta da redenção.

Bom, este é, para mim, um dos poemas mais interessantes de Byron. Não é um poema fácil, pois o inglês no qual ele foi escrito não é mais corrente, mas uma vez que se entenda o significado de cada palavra, e se tenha em mente quais sentimentos Byron queria transcrever (e a questão do transcrever é importante), de que tipo de vivência vinham este sentimentos, quer fosse uma vivência imaginada ou experienciada, coisas que se pode apreender lendo os demais poemas dele e por meio do seu contexto histórico, encontramos um poema magnífico, com um dispositivo narrativo que mescla o narrador ao objeto da narração, quem é a taça? quem é que segura a taça? seriam os dois apenas um? - assim entendo este poema. O poeta, seus sentimentos traduzidos em palavras e suas palavras mortificadas pela tinta da língua escrita, aquele que vivo estava quando escreveu sobre a morte, sobre o amor... O poeta é o amor, a poesia é a taça que representa a morte e o meio, e os seus sentimentos são o vinho, a bebida dos Deuses, o deleite.
Eu estava pensando em começar a ler Shakespeare, pois fiquei sabendo que suas obras compreendem mais de 29.000 palavras diferentes no original em inglês, então lê-las em português poderia ampliar bastante meu vocabulário... Mas temo que venha a ser perda de tempo, uma vez que muitas das traduções para o português, que encontro de obras que conheço no original em inglês, deixam muito a desejar.
Termino, então, com a minha própria tradução do poema de Byron, a qual fiz algumas modificações da tradução direta do original, e que provavelmente não respeita nenhuma métrica ou coisa que o valha, pois não sou versado nas regras de poesia, mas que respeita o sentido que havia no original:
Linhas inscritas em uma
taça feita de um crânio


Não comece - nem considere que meu espírito se foi:
Em mim contempla-se o único crânio
Do qual, diferente de uma cabeça viva,
O que jorra jamais é enfadonho.

Eu vivi, eu amei, eu sorvi, como você:
Eu morri: que a terra deixe meus ossos resignarem;
Encha-me - não podes ferir-me;
O verme possui lábios mais dissimulados que os teus.

Melhor conter a uva fermentada,
Do que nutrir ao gosmento do verme-da-terra;
E circular, na forma de cálice,
A bebida dos Deuses, do que alimento dos répteis.

Onde uma vez minha inteligência, se por sorte, brilhou,
Em favor dos outros me é permitido brilhar;
E quando, que infortúnio! nossos cérebros se forem,
Qual substituto mais nobre que o vinho?

Engole enquanto podes: mais um expediente,
Quando tu e o que é teu, assim como eu, for despendido,
Poderão resgatar-te do abraço da terra,
E irão rimar e deleitar-se com os mortos.

Por que não? já que no pequeno dia da vida
Nossas cabeças produziram apenas tragédia;
Redimido dos vermes e da derradeira argila,
Esta minha sorte é pr'eles, ei de ser útil.



Imagem que encontrei na página Nicks Wines Merchants, procurando no Google Image Search por uma ilustração para este post. Na página é possível ler a interessante história do cálice feito de um crânio que era usado por Lord Byron... O quanto de verdade existe nesta história, deixo isso para quem for historiador.


Adendo:
Meu colega Taimon sugeriu que, na segunda linha do terceiro verso, earth-worm fosse traduzido como "verme-terrestre" ou "vermes-terrestres", para dar um sentido de pessoas comuns, ou alienadas. Inicialmente eu não havia feito esta leitura do poema, mas admito que ela faz sentido, uma vez que o romanticismo europeu explorava o sentimento de solidão da intelectualidade em face à ignorância das massas proletárias empobrecidas pela substituição da sua mão de obra pelas máquinas no período da Revolução Industrial. Se bem que vermes-terrestres, penso eu, foge um pouco à sutileza desse tipo de poesia...
Também deu a sugestão de substituir o "você" por "vós" na primeira linha do segundo verso.

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