Quinta-feira, dia 15 de Maio, eu e alguns colegas da minha turma tivemos a oportunidade de conhecer em primeira-mão uma das turmas de necessidades especiais do sistema de educação inclusiva da Escola Estadual Barão de Cêrro Largo, da cidade do Rio Grande.
Fazia algum tempo já, que havíamos assistido em nossa sala de aula uma palestra da Profa. Tania Madeira, que veio nos falar sobre a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e sobre a experiência de trabalhar e interagir com surdos e deficientes auditivos.
A distinção que se faz entre a pessoa surda e o portador de deficiência auditiva é que o surdo não é considerado, do ponto de vista da comunidade surda, um portador de deficiência, e sim uma pessoa diferente, com uma maneira própria de interagir e comunicar-se em sociedade. Neste sentido, o surdo é prejudicado na medida que a sociedade não lhe dá, como pessoa diferente, oportunidades iguais às dos ouvintes e não se adapta à sua cultura e necessidades. Já o deficiente, segundo o ponto de vista de algumas pessoas integrantes da, e que trabalham com, a comunidade surda, é compreendido como sendo aquela pessoa com deficit auditivo, que utiliza-se de próteses auditivas para emular a audição humana, com algumas perdas consideráveis em muitos casos.
Enquanto o surdo não escuta e, por isso, é visto como apenas diferente, o deficiente auditivo possui um deficit na audição, sendo que em ambos os casos são portadores de necessidades especiais e necessitam que as necessidades características de suas condições humanas sejam atendidas pela sociedade, da mesma maneira que se espera que a sociedade atenda às necessidades das demais pessoas.
Durante a palestra, mais do que as peculiaridades da LIBRAS, o que mais chamou a minha atenção, e a de alguns colegas meus também, foi a excitação e a intensidade da palestrante ao falar da comunidade e da cultura surda. Havia verdadeira paixão em suas palavras, se me é permitido falar assim, ao tentar descrever como são estas pessoas especiais. Para mim, ouvinte e indivíduo que nunca havia convivido ou mesmo interagido com pessoas surdas, aquilo soava um tanto estranho: afinal, como a ausência de audição poderia fazer uma pessoa ser tão diferente e singular, se é que de fato podia? Admito que ouvi tudo com um certo ceticismo e deixei guardadas na minha mente as palavras da Profa. Tania.
Creio que foi importante, neste momento, falar sobre esta palestra e sobre a impressão que causou, incluindo o ceticismo, justamente antes de falar sobre a experiência que tivemos na Escola Estadual Barão de Cêrro Largo, que diluiu e eliminou completamente meu ceticismo em relação aos surdos e à sua cultura.
A visita à escola ocorreu na parte da manhã, no período de cerca das 8 às 10:30 hrs. Ao chegarmos na escola fomos recebidos pela equipe de apoio didático e logo fomos encaminhados para uma sala/auditório onde os alunos, crianças de idades entre 8 e 12 anos eu imagino, nos aguardavam juntamente às suas educadoras.
Em relação à escola, penso que precisa ser dito que ficamos todos felizes em notar a organização da equipe e a limpeza das dependências, coisas que sem dúvida são cruciais para a qualidade de ensino que os alunos irão receber.
Num primeiro momento, ao chegarmos na sala onde iríamos travar contato com os alunos surdos, encontramos estes sentados a nossa espera, em cadeiras organizadas na forma de um semi-círculo, todos mais ou menos agrupados em um perímetro próximo às professoras. Resistindo ao hábito bastante natural que se manifesta nestas ocasiões de encontro com pessoas desconhecidas, de manter uma certa distância e sentar-se um pouco afastado junto ao grupo que me acompanhava, fiz rapidamente um raciocínio contrário a esta tendência, no sentido de que: se eu estava ali para conhecer a realidade dos surdos e portadores de deficiência auditiva por meio do contato, então eu deveria evitar qualquer comportamento de manter-me afastado daquelas pessoas ou criar restrições ao contato delas comigo; visando, justamente, favorecer um contato mais próximo, que certamente iria propiciar uma vivência mais rica.
Tendo isto em mente, sentei-me o mais próximo que consegui daquelas crianças, logo atrás de uma garotinha de 8 ou 9 anos de idade e de um garotinho de 12 anos de idade, que estavam constantemente interagindo entre si e, por isso mesmo, despertaram meu interesse.
Assim que foram feitas as apresentações, as professoras que atendem a estas crianças começaram a nos falar sobre o funcionamento da escola, utilizando-se do recurso de um datashow para ilustrar o que era dito. A escola Barão de Cêrro Largo busca atender crianças em todo o espectro de necessidades especiais, procurando propiciar uma educação inclusiva para deficientes auditivos, surdos, cadeirantes, etc. As professoras contam com vários recursos de apoio didático, tal como o laboratório de informática com um software de apoio no ensino da LIBRAS, e com muita criatividade, procurando inclusive desenvolver atividades que aproximem estes alunos das comunidades em que vivem.
Enquanto as professoras iam falando sobre sua experiência no ensino de crianças surdas e deficientes auditivas e de suas estratégias de inclusão, foi por meio daquelas duas crianças sentadas a minha frente que comecei a compreender a excitação demonstrado pela Profa. Tania em sua palestra. Havia, de fato, algo de muito especial naquelas crianças, que tão logo que me sentei ali, começaram a me escrutinar com os olhos, olhos de um intenso brilho magnético, a formular suas próprias estratégias de como iriam interagir comigo. Não demorou muito para que elas tentassem uma aproximação comunicando-se em LIBRAS comigo, coisa que eu conseguia responder, no auge do meu esforço, com gestos que tentavam expressar minha falta de entendimento e com expressões faciais de perplexidade.
Mesmo assim, aquelas crianças não desistiam e tentavam outras estratégias, algumas bem características da idade infantil, como a de movimentar-se constantemente na cadeira, levantar-se e sentar-se novamente, mexer nos meus objetos que estavam ao alcance da mão, como o meu relógio e o meu celular, etc. Tudo de maneira muito graciosa e incrivelmente intensa. Intensidade, essa era a palavra que não saiu da minha mente em nenhum momento durante aquela visita e que eu usaria para melhor definir aquelas crianças e o todo da experiência que tive com elas. Eram crianças intensas no olhar, intensas na expressão corporal, intensas no gestual e nas expressões faciais, intensas no comunicar-se e no interagir. Tão intensas que eu cheguei a me perguntar e a ficar formulando hipóteses sobre a causa de tal intensidade, se era a condição de surdas que lhes fazia ser assim, talvez por terem de ser assim para receber uma quantidade adequada de atenção de pessoas não preparadas, se era a própria LIBRAS que potencializava a expressividade natural das crianças, enfim, apenas conjecturas que guardei comigo e das quais não poderia falar com propriedade.
Enquanto estava ali tentando comunicar-me com aquelas crianças, procurava, ao mesmo tempo, manter um nível mínimo de atenção ao que as professoras falavam. Nisso, uma outra questão da qual, até então, eu não havia me dado conta, era de que algumas daquelas crianças não eram apenas surdas ou portadoras de déficit auditivo, mas também de outras necessidades especiais e de alguns déficits no desenvolvimento pela sua inclusão tardia no sistema de ensino especializado.
Neste sentido, duas causas relacionadas entre si foram apontadas: a falta de compreensão de alguns dos pais para com as necessidades especiais de seus filhos, e a visão médica da surdez como algo que precisa ser consertado de qualquer maneira, como se fosse uma doença. Muitos pais não têm interesse em aprender LIBRAS, coisa que parece ainda mais absurda uma vez que se conhece estas crianças e que se vê o que a LIBRAS faz por elas, e a visão médica de abordar a surdez como doença faz com que uma espectativa, muitas vezes negativa, seja nutrida pelos pais, da negação da real condição de seus filhos e da esperança que eles venham a ser simplesmente como as outras crianças. Com certeza existem muitos outros fatores sociais, econômicos e culturais envolvidos, como a situação de escassez de recursos de muitas destas famílias e a falta de informação para a comunidade, além da falta de uma maior aproximação com a realidade dos surdos.
De início, a postura de falta de interesse de alguns pais em aprender a LIBRAS, coisa que permitiria que estes desenvolvessem uma comunicação eficaz e de maior qualidade com seus filhos, e lhes permitira que adentrassem e participassem mais do mundo destas crianças, é algo que choca e, quando não são considerados os demais fatores envolvidos, revolta. Especialmente quando se está tão próximo de crianças tão amáveis e cheias de vida como aquelas. Mas a sociedade não é feita de fatos preto no branco, e todas as relações sociais e formas de comportamento de correntes destas interações são sistemas complexos que não podem e não devem ser abordados sem que todas as variáveis possíveis e relevantes sejam consideradas. Desta forma, cabe ao governo e a sociedade como um todo agir para promover esta inclusão, desde o seio familiar até as relações de ensino e de trabalho.
Ao mesmo tempo que estes problemas eram levantados, a afeição pela comunidade surda só fazia aumentar. Outro ponto alto da visita foi a exibição de alguns vídeos de atividades realizadas em prol do ensino daquelas crianças. Foi exibido o vídeo de uma peça de teatro realizada em homenagem ao dia das mães, e outro vídeo, que me chamou mais atenção ainda pela espontaneidade que nele podia ser vista, onde duas das crianças que estavam presentes na sala percorriam os corredores de um supermercado do município agarrando frutas e outros gêneros de consumo e sinalizando seus correspondentes simbólicos na linguagem de sinais.
Também foi muito esclarecedor observar a dinâmica de conversação em grupo das crianças mais velhas e mais avançadas na linguagem de sinais; a maneira como elas conseguiam discutir assuntos - dos quais eu não fazia a menor idéia por não ser capaz de compreender a língua - e dividir sua atenção no gestual concomitante de dois ou mais participantes em uma discussão. Eram discussões silenciosas e muito intensas, novamente esta palavra, que para uma pessoa ouvinte ilustravam muito bem um oximoro, ou seja, algo que causa um certo espanto por possuir em si qualidades aparentemente contrárias. Em meio aos infindáveis gestos era possível notar sorrisos, preocupação, contrariedade, enfim, todo o espectro de sentimentos humanos que afloram nas mais acaloradas discussões.
Encerro este relato dizendo que naquela manhã ganhei algo muito especial daquelas crianças, ganhei um momento de doce alegria na minha vida, o qual foi construído por elas, além de uma expansão considerável da minha visão quanto ao mundo e o que é ser humano. É um presente que não tem preço e que não pode ser inteiramente descrito em palavras, por mais que eu esgote meu vocabulário. Assim foi a qualia da minha experiência naquela manhã. Sai de lá com um certo pesar por não ter levado nada que pudesse contribuir para com elas, mas trouxe comigo a vontade de fazer algo neste sentido. Sai de lá com uma esperança renovada quanto a vida, pois aquelas são crianças que enfrentam dificuldades que derrubariam muitos adultos, e contudo elas têm consigo uma alegria que não se faz presente em pessoas que têm uma vida de batalhas muito mais triviais. Sai de lá sem a vontade de sair, levando comigo a vontade de voltar um dia e, quem sabe, poder dar algum retorno à este pequeno tesouro delimitado no tempo e no espaço que enriqueceu aquilo que sou, e que será guardado na memória, eu espero, por muitos anos.
Estão de parabéns a escola e os profissionais envolvidos na educação daquelas crianças, pois neles também foi possível notar os sintomas da epidemia de afeto que elas provocam em quem vai desprotegido e de coração aberto.
Está também de parabéns a Profa. Ana Furlong pela iniciativa de levar os alunos do curso de Psicologia nesta visitação.
Links de interesse:
Escola Barão de Cêrro Largo
http://escolabaraodecerrolargo.blogspot.com/
Blog da Escola Barão de Cêrro Largo, que procura divulgar a realidade cotidiana da escola.
Refletir, Reagir e... AGIR!
http://mel-o-pel.blogspot.com/
Blog de uma professora com Especialização em Educação de Surdos, ela própria portadora de deficiência auditiva, que trás consigo algumas das reivindicações da comunidade de surdos para com a sociedade.
Portal de LIBRAS
http://www.libras.org.br/
Portal de Libras é destinado a comunidade surda, familiares, profissionais e pessoas interessadas em aprender e divulgar a Língua Brasileira de Sinais - Libras e os direitos das pessoas surdas.
Dicionário de LIBRAS
http://www.acessobrasil.org.br/libras/
Um dicionário de LIBRAS disponibilizado pelo site Acessibilidade Brasil.
Fazia algum tempo já, que havíamos assistido em nossa sala de aula uma palestra da Profa. Tania Madeira, que veio nos falar sobre a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e sobre a experiência de trabalhar e interagir com surdos e deficientes auditivos.
A distinção que se faz entre a pessoa surda e o portador de deficiência auditiva é que o surdo não é considerado, do ponto de vista da comunidade surda, um portador de deficiência, e sim uma pessoa diferente, com uma maneira própria de interagir e comunicar-se em sociedade. Neste sentido, o surdo é prejudicado na medida que a sociedade não lhe dá, como pessoa diferente, oportunidades iguais às dos ouvintes e não se adapta à sua cultura e necessidades. Já o deficiente, segundo o ponto de vista de algumas pessoas integrantes da, e que trabalham com, a comunidade surda, é compreendido como sendo aquela pessoa com deficit auditivo, que utiliza-se de próteses auditivas para emular a audição humana, com algumas perdas consideráveis em muitos casos.
Enquanto o surdo não escuta e, por isso, é visto como apenas diferente, o deficiente auditivo possui um deficit na audição, sendo que em ambos os casos são portadores de necessidades especiais e necessitam que as necessidades características de suas condições humanas sejam atendidas pela sociedade, da mesma maneira que se espera que a sociedade atenda às necessidades das demais pessoas.
Durante a palestra, mais do que as peculiaridades da LIBRAS, o que mais chamou a minha atenção, e a de alguns colegas meus também, foi a excitação e a intensidade da palestrante ao falar da comunidade e da cultura surda. Havia verdadeira paixão em suas palavras, se me é permitido falar assim, ao tentar descrever como são estas pessoas especiais. Para mim, ouvinte e indivíduo que nunca havia convivido ou mesmo interagido com pessoas surdas, aquilo soava um tanto estranho: afinal, como a ausência de audição poderia fazer uma pessoa ser tão diferente e singular, se é que de fato podia? Admito que ouvi tudo com um certo ceticismo e deixei guardadas na minha mente as palavras da Profa. Tania.
Creio que foi importante, neste momento, falar sobre esta palestra e sobre a impressão que causou, incluindo o ceticismo, justamente antes de falar sobre a experiência que tivemos na Escola Estadual Barão de Cêrro Largo, que diluiu e eliminou completamente meu ceticismo em relação aos surdos e à sua cultura.
A visita à escola ocorreu na parte da manhã, no período de cerca das 8 às 10:30 hrs. Ao chegarmos na escola fomos recebidos pela equipe de apoio didático e logo fomos encaminhados para uma sala/auditório onde os alunos, crianças de idades entre 8 e 12 anos eu imagino, nos aguardavam juntamente às suas educadoras.
Em relação à escola, penso que precisa ser dito que ficamos todos felizes em notar a organização da equipe e a limpeza das dependências, coisas que sem dúvida são cruciais para a qualidade de ensino que os alunos irão receber.
Num primeiro momento, ao chegarmos na sala onde iríamos travar contato com os alunos surdos, encontramos estes sentados a nossa espera, em cadeiras organizadas na forma de um semi-círculo, todos mais ou menos agrupados em um perímetro próximo às professoras. Resistindo ao hábito bastante natural que se manifesta nestas ocasiões de encontro com pessoas desconhecidas, de manter uma certa distância e sentar-se um pouco afastado junto ao grupo que me acompanhava, fiz rapidamente um raciocínio contrário a esta tendência, no sentido de que: se eu estava ali para conhecer a realidade dos surdos e portadores de deficiência auditiva por meio do contato, então eu deveria evitar qualquer comportamento de manter-me afastado daquelas pessoas ou criar restrições ao contato delas comigo; visando, justamente, favorecer um contato mais próximo, que certamente iria propiciar uma vivência mais rica.
Tendo isto em mente, sentei-me o mais próximo que consegui daquelas crianças, logo atrás de uma garotinha de 8 ou 9 anos de idade e de um garotinho de 12 anos de idade, que estavam constantemente interagindo entre si e, por isso mesmo, despertaram meu interesse.
Assim que foram feitas as apresentações, as professoras que atendem a estas crianças começaram a nos falar sobre o funcionamento da escola, utilizando-se do recurso de um datashow para ilustrar o que era dito. A escola Barão de Cêrro Largo busca atender crianças em todo o espectro de necessidades especiais, procurando propiciar uma educação inclusiva para deficientes auditivos, surdos, cadeirantes, etc. As professoras contam com vários recursos de apoio didático, tal como o laboratório de informática com um software de apoio no ensino da LIBRAS, e com muita criatividade, procurando inclusive desenvolver atividades que aproximem estes alunos das comunidades em que vivem.
Enquanto as professoras iam falando sobre sua experiência no ensino de crianças surdas e deficientes auditivas e de suas estratégias de inclusão, foi por meio daquelas duas crianças sentadas a minha frente que comecei a compreender a excitação demonstrado pela Profa. Tania em sua palestra. Havia, de fato, algo de muito especial naquelas crianças, que tão logo que me sentei ali, começaram a me escrutinar com os olhos, olhos de um intenso brilho magnético, a formular suas próprias estratégias de como iriam interagir comigo. Não demorou muito para que elas tentassem uma aproximação comunicando-se em LIBRAS comigo, coisa que eu conseguia responder, no auge do meu esforço, com gestos que tentavam expressar minha falta de entendimento e com expressões faciais de perplexidade.
Mesmo assim, aquelas crianças não desistiam e tentavam outras estratégias, algumas bem características da idade infantil, como a de movimentar-se constantemente na cadeira, levantar-se e sentar-se novamente, mexer nos meus objetos que estavam ao alcance da mão, como o meu relógio e o meu celular, etc. Tudo de maneira muito graciosa e incrivelmente intensa. Intensidade, essa era a palavra que não saiu da minha mente em nenhum momento durante aquela visita e que eu usaria para melhor definir aquelas crianças e o todo da experiência que tive com elas. Eram crianças intensas no olhar, intensas na expressão corporal, intensas no gestual e nas expressões faciais, intensas no comunicar-se e no interagir. Tão intensas que eu cheguei a me perguntar e a ficar formulando hipóteses sobre a causa de tal intensidade, se era a condição de surdas que lhes fazia ser assim, talvez por terem de ser assim para receber uma quantidade adequada de atenção de pessoas não preparadas, se era a própria LIBRAS que potencializava a expressividade natural das crianças, enfim, apenas conjecturas que guardei comigo e das quais não poderia falar com propriedade.
Enquanto estava ali tentando comunicar-me com aquelas crianças, procurava, ao mesmo tempo, manter um nível mínimo de atenção ao que as professoras falavam. Nisso, uma outra questão da qual, até então, eu não havia me dado conta, era de que algumas daquelas crianças não eram apenas surdas ou portadoras de déficit auditivo, mas também de outras necessidades especiais e de alguns déficits no desenvolvimento pela sua inclusão tardia no sistema de ensino especializado.
Neste sentido, duas causas relacionadas entre si foram apontadas: a falta de compreensão de alguns dos pais para com as necessidades especiais de seus filhos, e a visão médica da surdez como algo que precisa ser consertado de qualquer maneira, como se fosse uma doença. Muitos pais não têm interesse em aprender LIBRAS, coisa que parece ainda mais absurda uma vez que se conhece estas crianças e que se vê o que a LIBRAS faz por elas, e a visão médica de abordar a surdez como doença faz com que uma espectativa, muitas vezes negativa, seja nutrida pelos pais, da negação da real condição de seus filhos e da esperança que eles venham a ser simplesmente como as outras crianças. Com certeza existem muitos outros fatores sociais, econômicos e culturais envolvidos, como a situação de escassez de recursos de muitas destas famílias e a falta de informação para a comunidade, além da falta de uma maior aproximação com a realidade dos surdos.
De início, a postura de falta de interesse de alguns pais em aprender a LIBRAS, coisa que permitiria que estes desenvolvessem uma comunicação eficaz e de maior qualidade com seus filhos, e lhes permitira que adentrassem e participassem mais do mundo destas crianças, é algo que choca e, quando não são considerados os demais fatores envolvidos, revolta. Especialmente quando se está tão próximo de crianças tão amáveis e cheias de vida como aquelas. Mas a sociedade não é feita de fatos preto no branco, e todas as relações sociais e formas de comportamento de correntes destas interações são sistemas complexos que não podem e não devem ser abordados sem que todas as variáveis possíveis e relevantes sejam consideradas. Desta forma, cabe ao governo e a sociedade como um todo agir para promover esta inclusão, desde o seio familiar até as relações de ensino e de trabalho.
Ao mesmo tempo que estes problemas eram levantados, a afeição pela comunidade surda só fazia aumentar. Outro ponto alto da visita foi a exibição de alguns vídeos de atividades realizadas em prol do ensino daquelas crianças. Foi exibido o vídeo de uma peça de teatro realizada em homenagem ao dia das mães, e outro vídeo, que me chamou mais atenção ainda pela espontaneidade que nele podia ser vista, onde duas das crianças que estavam presentes na sala percorriam os corredores de um supermercado do município agarrando frutas e outros gêneros de consumo e sinalizando seus correspondentes simbólicos na linguagem de sinais.
Também foi muito esclarecedor observar a dinâmica de conversação em grupo das crianças mais velhas e mais avançadas na linguagem de sinais; a maneira como elas conseguiam discutir assuntos - dos quais eu não fazia a menor idéia por não ser capaz de compreender a língua - e dividir sua atenção no gestual concomitante de dois ou mais participantes em uma discussão. Eram discussões silenciosas e muito intensas, novamente esta palavra, que para uma pessoa ouvinte ilustravam muito bem um oximoro, ou seja, algo que causa um certo espanto por possuir em si qualidades aparentemente contrárias. Em meio aos infindáveis gestos era possível notar sorrisos, preocupação, contrariedade, enfim, todo o espectro de sentimentos humanos que afloram nas mais acaloradas discussões.
Encerro este relato dizendo que naquela manhã ganhei algo muito especial daquelas crianças, ganhei um momento de doce alegria na minha vida, o qual foi construído por elas, além de uma expansão considerável da minha visão quanto ao mundo e o que é ser humano. É um presente que não tem preço e que não pode ser inteiramente descrito em palavras, por mais que eu esgote meu vocabulário. Assim foi a qualia da minha experiência naquela manhã. Sai de lá com um certo pesar por não ter levado nada que pudesse contribuir para com elas, mas trouxe comigo a vontade de fazer algo neste sentido. Sai de lá com uma esperança renovada quanto a vida, pois aquelas são crianças que enfrentam dificuldades que derrubariam muitos adultos, e contudo elas têm consigo uma alegria que não se faz presente em pessoas que têm uma vida de batalhas muito mais triviais. Sai de lá sem a vontade de sair, levando comigo a vontade de voltar um dia e, quem sabe, poder dar algum retorno à este pequeno tesouro delimitado no tempo e no espaço que enriqueceu aquilo que sou, e que será guardado na memória, eu espero, por muitos anos.
Estão de parabéns a escola e os profissionais envolvidos na educação daquelas crianças, pois neles também foi possível notar os sintomas da epidemia de afeto que elas provocam em quem vai desprotegido e de coração aberto.
Está também de parabéns a Profa. Ana Furlong pela iniciativa de levar os alunos do curso de Psicologia nesta visitação.
.
Links de interesse:
Escola Barão de Cêrro Largo
http://escolabaraodecerrolargo.blogspot.com/
Blog da Escola Barão de Cêrro Largo, que procura divulgar a realidade cotidiana da escola.
Refletir, Reagir e... AGIR!
http://mel-o-pel.blogspot.com/
Blog de uma professora com Especialização em Educação de Surdos, ela própria portadora de deficiência auditiva, que trás consigo algumas das reivindicações da comunidade de surdos para com a sociedade.
Portal de LIBRAS
http://www.libras.org.br/
Portal de Libras é destinado a comunidade surda, familiares, profissionais e pessoas interessadas em aprender e divulgar a Língua Brasileira de Sinais - Libras e os direitos das pessoas surdas.
Dicionário de LIBRAS
http://www.acessobrasil.org.br/libras/
Um dicionário de LIBRAS disponibilizado pelo site Acessibilidade Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário