quinta-feira, 22 de maio de 2008

O Estranho diário de Tristram Shady

No romance "The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman" de Laurence Sterne, escrita em 1759, o personagem Tristram Shandy se dedica a escrever sua autobiografia de maneira tão detalhada que para cada dia, sobre o qual fossem relatados os eventos em seu diário, era necessário cerca de um ano para elaborar e escrever a entrada. Sendo Tristram Shandy mortal, ele jamais seria capaz de terminar sua tarefa. Fugindo um pouco da história original de Sterne, podemos imaginar que Tristram tenha dado início ao seu diário escrevendo sobre o dia em que resolveu começar a escrever o seu diário; desta maneira, ao terminar de escrever sobre o dia em questão teria se passado um ano, fazendo com que a distância entre os eventos relatados no diário e os eventos atuais da vida de Tristram se tornasse cada vez maior. Contudo, se Tristram fosse imortal e vivesse para sempre, nenhuma parte do seu diário permaneceria sem ser escrita, pois para cada dia de sua vida um ano correspondente seria devotado à descrição daquele dia - infinitos anos para descrever infinitos dias, tal é a estranheza de se contemplar o conceito de infinitude enquanto somos seres finitos.
De início, ao imaginar tal coisa, pensei em Tristram escrevendo incessantemente, para descrever dias que remontavam às suas lembranças mais antigas, e o que ocorreria, imaginando um Tristram imortal, quando ele chegasse ao ponto em que começou a escrever o diário. Não bastaria uma descrição do tipo: "Neste dia eu comecei a escrever este diário", pois isso não lhe tomaria um ano inteiro. Também não faria muito sentido ele descrever a maneira como desenhou cada letra em seu diário, pois isso provavelmente aumentaria o tempo necessário para a descrição de cada dia. Com isso, comecei a me questionar como seria possível ocupar tanto tempo descrevendo um único dia. Imaginei, então, que Tristram descrevia detalhadamente cada uma de suas experiências, incluindo quais foram suas impressões iniciais e posteriores sobre cada uma destas experiências e, também, o que se passava por sua mente a cada momento. Imaginei, também, que Tristram considerava todas as possibilidades que ele era capaz de divisar e enumerar a cada momento de sua vida, e como fazia o processo de decisão, o que o levava a escolher por esta ou aquela alternativa; quais seriam as alternativas que foram sendo descartadas a cada momento e por quê.
Tendo isso em mente, pensei novamente sobre o que aconteceria quando ele chegasse ao ponto, ao dia, em que começou a escrever o seu diário. Neste caso ele iria falar, também, sobre as impressões que teve, sobre as experiências já descritas, e quais sentimentos estas memórias lhe trouxeram. Dada a similaridade e óbvia familiaridade da situação, Tristram experienciaria uma espécie de laço, ou um circuito de 360º em sua experiência, uma quasi-metacognição sobre seu passado, ao descrever seu passado remoto, sendo descrito no presente, e o que isto lhe trás... O mesmo laço voltaria a acontecer quando ele, aeons depois, viesse a descrever o dia em que descreveu o dia em que começou a escrever seu diário, tornando, em si, de fato, uma extensão da análise de cada dia, do momento em que o primeiro laço ocorresse: se, de início, Tristram levava um ano para descrever cada dia, ao chegar ao dia em que começou a descrever cada dia, ele levaria 365 anos descrevendo o ano que passou descrevendo um único dia.
A dilatação, se assim devemos chamar, se tornaria maior a cada laço: Tristram descrevendo a si mesmo descrevendo a si mesmo o dia em que começou a descrever a si mesmo, que neste caso ele teria de descrever os 133.225 dias que levou para descrever o ano que passou descrevendo um único dia, o que lhe tomaria o mesmo número de anos.
Por outro lado, isso tudo dependeria das regras às quais ele se submetesse para elaborar as descrições e para escrever o seu diário. Tristram poderia, ao invés de ficar escrevendo incessantemente, ocupar apenas uma pequena fração de cada um dos seus dias para a elaboração do diário, ainda sendo prolixo nos detalhes, mas num grau bem menor do que na hipótese anterior.

Para ver a obra original de Laurence Sterne no Google Books: The Life and Opinions of Tristram Shandy, 1857.
Também disponível no Projeto Gutenberg: EText-No. 1079

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