quinta-feira, 5 de junho de 2008

A Polêmica das Partículas

Existe um boato correndo na mídia impressa de que "o número de sinapses seja equivalente ao número de partículas existentes no universo desde o Big-Bang" e que "isso torna seu estudo quase impossível."
Eu acredito que nem deveria ser necessário explicar o quanto a primeira afirmação reproduzida acima é errada, pois tudo o que existe no Universo é feito de partículas, inclusive nossas sinapses neuronais. Mais do que isso, uma vez que uma sinapse é a junção de duas fibras nervosas, fica evidente que precisa, necessariamente, existir um número maior de partículas em nosso sistema nervoso do que o número de sinapses no mesmo.
Ao falar sobre sinapses, estamos falando sobre números imensos: são cerca de 100 bilhões (10^11) [ref. 1] de neurônios e 150 trilhões (15 x 10^13)[ref. 2] de sinapses no cérebro. Porém o Universo contém um número de partículas estimado em 65.536 x 10^72 (sessenta e cinco mil e quinhetos e trinta e seis vezes um tresvingintilhão)[ref. 3; ref. 4].
E realmente não importa se estas estimativas estão corretas ou erradas, pois afinal, até onde se sabe, nós, incluíndo o conteúdo de nossas caixas cranianas, fazemos parte do Universo. Desta maneira, caso a afirmação "o número de sinapses seja equivalente ao número de partículas existentes no universo desde o Big-Bang" fosse verdadeira, então nosso cérebro não poderia estar contido dentro do Universo, pois possuindo um número de sinapses equivalente ao número de partículas existente no Universo, ele teria de ter um número muito maior de partículas do que o número de partículas existentes no Universo para poder formar todas estas sinapses!
Quanto a ponderabilidade do cérebro, temos que admitir que a ciência médica teve seus tropeços ao longo de sua história, como é possível conferir no divertido A Assustadora História da Medicina de Richard Gordon [Ediouro, 1997], mas o campo da neurologia tem produzido conhecimentos muitos úteis e precisos para o estudo do cérebro enquanto mente graças ao desenvolvimento tecnológico e ao árduo esforço dos pesquisadores.

Outro boato que tem circulado na mídia impressa aparece na forma de algumas sentenças que dão a idéia de que um único neurônio é capaz de produzir um pensamento ou uma tomada de decisão. Estas sentenças aparecem nas seguintes formas: "Se tomarmos uma decisão por minuto e esta depender da ativação de um neurônio, serão necessários trinta mil anos para que todos os neurônios que temos tenham sido ativados num processo decisório. Isso significa dizer que, muito provavelmente, temos neurônios que, ao longo de nossas vidas, nunca serão ativados, o que nos coloca uma questão intrigante: teremos porventura mais estados cerebrais d que estados mentais? E, se confirmado, teremos então uma razão preliminar para sustentar que estados mentais são estados cerebrais?"
Quando eu li isso pela primeira vez achei que havia lido errado, ou que era alguma espécie de estrapolação absurda com a finalidade de realizar algum experimento mental. Mas então li mais adiante: "Estima-se que o cérebro humano tenha 10 bilhões de neurônios, o que significa que o número de pensamentos que podemos ter é imenso. Suponhamos que um ser humano tenha 100 pensamentos por segundo. Em 100 anos, ele chegaria a 316 bilhões de pensamentos. Contudo apenas 39 neurônios seriam necessários para ter esse número de pensamentos: os 316 bilhões de estados podem ser simulados por uma fileira de apenas 39 lâmpadas acendendo e apagando alternadamente."
No docudrama Vítima do Cérebro (Victim of the Brain, 1988 [ref. 5]), Douglas Hofstadter explica de maneira bastante clara e acessível que um neurônio sozinho não é capaz de formar uma representação mental; como Daniel Dennett costuma dizer em suas palestras quando fala sobre consciência, "um neurônio sozinho não é consciente" ou "a consciência é formada por bilhões de pequenas células, sendo que nenhuma delas, sozinha é consciente." São necessárias várias estruturas neuronais trabalhando em paralelo para que um pensamento possa se formar [ref.6 ; ref. 7], cada estrutura destas é formada por milhares, senão milhões, de neurônios.
Quem tem algum conhecimento básico em processamento de dados sabe que computacionalmente é impossível representar de forma binária mais do que 0's e 1's com uma única válvula, lâmpada ou transistor. Para representar uma única letra latina, como as letras que constituem este texto, são necessários 8 bits, ou seja, oito estados de ligado e desligado, ou 1 byte. Se meu cérebro fosse análogo a um computador, seria necessária a ativação de um conjunto de vários neurônios para cada palavra que eu escrevo e, supondo que exista uma mente consciente e inteligente entre as minhas orelhas, faz-se necessário levar em consideração os conjuntos semânticos cognitivos de significação, que me habilitam a formular estas frases e a escolher, de maneira coerente, as palavras que usarei, encadeiando-as em frases dotadas de sentido. Desta maneira, mais do que circuitos em redes neurais formados por inúmeros neurônios, estruturas inteiras precisam ser ativadas para um pensamento simples, como este que estou realizando para refutar as afirmações que li.

Mas não termina ai... Como transparece na analogia das lâmpadas ligadas e desligadas em série, parece haver uma idéia de processamento serial e binário no cérebro. Essa idéia também aparece em outras sentenças, como: "De acordo com Bremermann, há um limite fundamental para a velocidade dos computadores que não pode ser ultrapassado. Tal limite fundamental deriva da idéia de que a velocidade máxima de transmissão de sinal entre os componentes internos de um computador é limitada pela velocidade da luz, ou seja, 3.108 m/segundo. O tempo de propagação ou intervalo de transmissão de sinal entre os componentes internos do computador é determinado pela distância na qual se situam tais componentes. Mesmo que supusermos a possibilidade tecnológica de construir um computador muito pequeno para minimizar e otimizar a trajetória de transmissão de sinal, tal limite fundamental não pode ser utrapassado[...]."
Parecem haver duas confusões aqui. Primeiro é a questão do processamento serial. O cérebro não se processa de maneira serial, manipulando pedacinhos de informação um de cada vez, mas de maneira paralela em níveis consciente e inconsciente. Isso fica claro devido a nossa capacidade de caminhar na rua ao mesmo tempo que conversamos com um amigo e observamos o trânsito a nossa volta. Para nos manter equilibrados sobre duas pernas apoiadas em uma superfície de contato relativamente pequena, em movimento por terreno nem sempre regular com uma velocidade mais ou menos constante, são necessários diversos cálculos que realizamos, em sua maioria, de maneira inconsciente com auxílio do cerebelo. O cerebelo, aquela massa mais escura posterior ao telencéfalo, detém consigo a maior parte dos neurônios do sistema nervoso central: cerca de 20 bilhões de neurônios para o neocórtex e 70 bilhões para o cerebelo [ref. 1; ref. 2]. Para que possamos observar o trânsito, precisamos mobilizar diversas estruturas, dos receptores visuais, nossos olhos, ao córtex visual, às áreas associativas que dão significado ao que vemos. Para conversarmos, precisamos ser capazes de ouvir (área de Brodmann 41 e 42), compreender (área de Wernicke) e emitir uma resposta (área de Broca).
Alguém que lembra da história da informática, talvez resolva pensar: mas e se o processamento cerebral for serial mas pareça paralelo apenas de forma preemptiva? Bom, minha resposta para isso é que a informação trafega no cérebro a uma taxa de 1 MHz (1000 ciclos por segundo) [ref. 8; Brandão. Psicofisiologia, Atheneu, 2005; Schmidt. Neurofisiologia, EPU, 2003]), que talvez pareça rápido mas, dada a complexidade daquilo que entendemos por consciência, é na verdade muito lento. A vida, como conhecemos, depende não de um único fluxo contínuo de processamento, mas de varios fluxos de processamento ocorrendo em simultâneo. E isso não difere dos modelos artificais de redes neurais, formados por redes de computadores em processamento paralelo, como supercomputadores também.
A outra confusão se refere a complexidade computacional máxima descrita por Bremermann. Sinceramente não me lembro de ter lido nada deste autor em específico, mas pelo o que foi exposto, parece que ele se refere a limites computacionais teóricos, como quando se diz que "uma senha forte é inquebrável [ref. 9]", o que não é uma regra, mas uma generalização prática. Existem muitas técnicas de arquitetura de hardware e de software que permitem burlar os limites computacionais estabelecidos, assim como o desenvolvimento tecnológico. P. ex. a miniaturização dos circuitos não visa apenas aproximar os transistores, mas tornar estes mais eficientes quanto ao consumo de energia e também aumentar sua densidade populacional em um substrato, uma medida prática e econômica. O limite da transmissão de dados, em muitos casos, se não na maioria, não chega nem perto da velocidade da luz, sendo medido em freqüências de sinais, ou ciclos. Da mesma forma que eu acredito que ocorra no cérebro humano, essa limitação de velocidade é vencida por meio de processamento de pedaços de informação em paralelo.

Por fim, tenho a intuição, por assim dizer, que corremos o risco de ser temerários ao compararmos a arquitetura cerebral à atual arquitetura dos computadores, mesmo os mais avançados. Falando de um exemplo que todos podemos compreender, o processo de manufatura de semicondutores está na ordem dos 45 nm [ref. 10], sendo que esta medida se refere à distância entre as trilhas dos circuitos dos chips, e acredita-se que o limite físico será alcançado nos próximos anos quando essa tecnologia chegar a 22 nm. Depois disso, provavelmente serão necessárias novas tecnologias, bastante inovadoras, para que se consiga continuar avançando na miniaturização dos componentes.
Quanto ao cérebro humano, podemos dizer que este possui uma arquitetura de 40 à 20 nm, podendo ser menor ainda em sinapses elétricas! O que é um problema para a eletrônica pode ser a verdadeira mágica para a vida humana. Explico o por quê: um processo de fabricação menor que 22 nm não é complicado apenas pela dissipação termal, coisa prevista em circuitos que operam em altos ciclos como os processadores modernos, mas também por um efeito chamado, em inglês, de quantum tunneling. Sobre este efeito, só ouso apresentar a definição da Wikipedia: "trata-se de um fenômeno nanoscópico no qual uma partícula viola os princípios da mecânica clássica penetrando ou passando através de uma barreira potencial ou impedimento maior do que a energia cinética da partícula" [ref. 11, ref. 12]. Hoje, mais cedo, procurando sobre o número de partículas no Universo, encontrei a página de Tony Smith, que parece ter alguma formação em Física, mas realmente não sei dizer em que nível pois a página dele é, digamos assim, "muito louca". Naquela página havia um link para um texto entitulado Quantum Consciousness, justamente num dia em que eu estava pensando taxativamente que 'é sábio evitar entrar nos domínios da física quântica, especialmente se você não é físico, para evitar falar bobagens'. Ainda assim resolvi dar uma olhada no que ele tinha para dizer e, embora eu lesse, não fui capaz de captar muito bem a mensagem... Até me lembrar sobre os problemas para avançar no processo de fabricação de semicondutores e da minha surpresa ao ler nos livros de neurofisiologia a distância entre as sinapses... Coisas sobre as quais Smith fala no seu texto mas que, pelo menos para quem não entende física e kabala, fica meio difícil compreender.
Bom, em suma, este post, que nada mais é do que um rant, termina com uma consideração de possível reconciliamento desde que vos escreve com as idéias de John Searle. Quero dizer, talvez, numa possibilidade bem remota, essas "anomalias" que ocorrem na ordem das coisas em escalas quânticas, dêem alguma margem para um livre-arbítrio, numa hipótese evidentemente bastante ousada e que eu mesmo não sou capaz de adentrar no meu atual nível de saber.

E como costumo colocar referências para o local de onde tiro os textos citados, o texto que foi objeto deste rant veio da revista Ciência e Vida - Filosofia Especial: Enigmas da Consciência na Filosofia da Mente. Editora Escala, Ano I, no. 3. É com pesar que eu não recomendo. C'est la vie.

Ps.: Hoje, ao tomar meu café da manhã, me ocorreu um pensamento um tanto nefasto... Baseio minhas crenças naquilo que me é ensinado, em especial pelos professores pelos quais tenho maior consideração, e nas pesquisas posteriores que realizo. Sempre tenho cuidado ao escolher as minhas fontes e sempre procuro fontes ao questionar as coisas, procuro ao máximo fugir dos achismos e basear minhas hipóteses no que se têm por hard science. Mas e se, neste caminho de construção do conhecimento, eu tropecei em alguma informação de base -- aquele tipo de informação que utilizamos fundação e sobre a qual se construimos todo o resto -- errada? Isso já aconteceu anteriormente nas minhas colocações precipitadas sobre a teoria comportamental radical. Contudo, o que me deixa mais tranquilo, é que estou sempre aberto a correções e ao debate educado nos domínios científicos. E também estou sempre lendo coisas de diferentes fontes sobre aquilo que me interessa, mesmo quando expressam visões e posições opostas às que eu acredito. Com isso, espero ser capaz de minimizar esse risco, essa sombra de vieses.

Um comentário:

Psicólogo Cláudio Drews disse...

Fazendo um cálculo do número de sinapses relativo ao número de humanos habitando o planeta Terra, que dá mais ou menos 15 trilhões * 6,7 bilhões, encontrei o número de 96,03^76. Um número superior à estimativa de partículas disponíveis no Universo referida na página. Dando mais uma pesquisada na internet, encontrei a figura de 10^77 partículas de massa bariônica (qualquer tipo de átomo) no Universo. Logo, aconselho adotar a figura de 10^77 para partículas disponíveis no Universo e 96^76 sinapses existentes em todos os cérebros humanos somados. O.o
São tipo... 10 seguido de 77 zeros para partículas no Universo e 96 seguido de 76 sinapses no cérebro...
Acho que esta estimativa está errada, pois existem muito mais cabeças de gado na Terra do que seres humanos, se levarmos em consideração todos os sistemas nervosos de todos os seres vivos de todas as espécies existentes, teremos um número de sinapses absurdamente maior do que o número de partículas existentes no Universo, o que colocaria os sistemas nervosos fora do Universo (enquanto conjunto matemático, por exemplo, o que não pode ser, uma vez que uma sinapse é uma coisa material).