segunda-feira, 9 de abril de 2007

União e Casamento (Antropologia)

INTRODUÇÃO


A Antropologia Cultural aponta, e muitas das vertentes da Sociologia concordam, que a família é o fundamento universal das sociedades, podendo ser encontrada nas mais diversas formas, em todos os agrupamentos humanos.

E o fundamento universal da família é o casamento, ou a união de dois indivíduos, com propósitos que vão muito além dos sentimentos que estes nutrem um pelo outro.

As relações que se desenvolvem a partir do casamento causam impacto não apenas no seio familiar e na sociedade, mas também influenciam as mais diversas instituições que norteiam o desenvolvimento social.

O tríplice aspecto da Antropologia, como ciência Social, Humana e Natural, encontra um dos melhores exemplos possíveis naquilo que é esperado dos indivíduos ao contraírem o matrimônio: sua união é reconhecida pelo grupo que integram; irão perpetuar, como célula dependente daquela sociedade, sua história, crenças, usos e costumes, filosofia, linguagem, etc; e tal união deverá fortalecer os vínculos psicológicos dos indivíduos com seu meio social e também gerar novos indivíduos que irão dar corpo ao grupo.



1 O QUE É O MATRIMÔNIO


O matrimônio é um padrão cultural, de significados bastante integrados quanto à forma e psicologia: qualquer alteração nos traços de seu complexo cultural - o casamento - , influencia um aspecto psicológico delineado por tais traços carregados de simbolismo.

A utilidade social do matrimônio é justamente fazer com que os indivíduos assumam o compromisso de fazer aquilo que é esperado que eles façam, dentro das normas e dos valores culturais; transmitindo estas normas e valores. Como exemplo disso é possível citar o parágrafo 2 do Cânon 226 do Código de Direito Canônico, onde está escrito que “os pais, tendo dado a vida aos filhos, têm a gravíssima obrigação e gozam do direito de educá-los; por isso, é obrigação primordial dos pais cristãos cuidar da educação cristã dos filhos, segundo a doutrina transmitida pela Igreja.” [grifo nosso]

Os traços culturais do casamento são bastante ilustrativos: o vestido branco, simbolizando a virgindade e a pureza da noiva, o terno do noivo, simbolizando algum status social e conformidade com as normas, o anel de noivado com o nome gravado em metal, simbolizando a união indissolúvel que, juntamente ao contrato civil, é uma mensagem implícita de propriedade.

Os valores representados por tal simbolismo são arbitrários e pertencem muito mais ao âmbito normativo da cultura ideal: “expressos verbalmente como bons, perfeitos, para o grupo, nem sempre são freqüentemente praticados.” (MARCONI e PRESOTTO, 2006)

Na sociedade ocidental o contrato é um elemento que vem ganhando cada vez mais importância desde que foi declarado como indispensável por John Calvin, no século XIV; sua existência muitas vezes acaba por equivaler a um certificado de propriedade no inconsciente familiar e as obrigações que ele implica ratificam tal identificação.

O matrimônio possui um forte aspecto cultural de mecanismo de controle, como na definição de Geertz (1973 apud MARCONI e PRESOTTO, 2006), embora a cultura não se limite, em função, apenas em manter a homogeneidade de um grupo humano.

Uma vez casados, os indivíduos envolvidos se encontram imersos em um mundo de normas onde papéis são delineados, com diferentes funções e espectativas. Por que os papéis são desiguais e contrastantes, é possível dizer que em muitos momentos da relação haverá um agressor e um defensor, mesmo que tal dinâmica se manifeste de forma apenas tácita. Isso ocorre quando os interesses individuais entram em conflito com normas ideais que vão contra essa individualidade.

Não é difícil imaginar estratégias militares de controle em tal ambiente, onde a vontade de um deve prevalecer sobre a liberdade do outro:

Se os soldados forem punidos antes que tenha se formado [com a liderança] um elo emocional, eles não serão obedientes, e se não forem obedientes, será difícil dirigi-los. Se penalidades não forem impostas uma vez estabelecido esse elo emocional, os soldados não podem ser dirigidos.



O texto foi extraído do livro A Arte da Guerra: os documentos perdidos (CLEARY, 1999. p. 142), e parece se adaptar muito bem a logicidade social do casamento, bastando substituir a palavra soldados pela palavra noivos e a palavra liderança por pela palavra sociedade.

O ponto que vale ressaltar aqui é que, socialmente, não importa se é a vontade do marido ou da esposa que deve prevalecer, daí a diversidade quanto a esse aspecto na forma de famílias matriarcais e patriarcais: o casamento dá embasamento à vontade do corpo social em meio a união dos indivíduos, utilizando-se dos papéis desempenhados por estes para exercer controle sobre suas vidas.


2 RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS


Pesquisadores têm apontado para a importância das questões relacionadas à união íntima de indivíduos no desenvolvimento social em diversos tipo de agrupamentos humanos e culturas. Mudanças drásticas nas estruturas sociais não chegam a modificar completamente o modo como a sociedade se organiza e isso é devido, em parte, ao papel da instituição familiar e de matrimônio.

Um exemplo disso pode ser encontrado na correlação do papel da mulher, da religião e da urbanização nas sociedades Africanas, onde as estruturas estão continuamente revolucionando desde a interferência do comércio de escravos e da colonização. (BROWN e RADWANSKA-ZAYAC, 2007)

As mulheres sempre tiveram importância crucial nas sociedades Africanas, embora sua valorização como indivíduo seja menor. As mudanças começaram a ocorrer como resultado de avanços sociais ocorridos entre 1950 e 1960, quando a expectativa de vida entre as mulheres Africanas saltou de 37 para 50 anos. Esse progresso diminuiu de ritmo, sendo que no final dos anos 90 a expectativa de vida não passava de 54 anos, e tende a retroceder até 2010, quando a estimativa prevê uma expectativa de vida não maior do que 44 anos para o sul da África, dado o avanço do HIV.

Neste quadro, as crianças tem alto valor social, pois são fonte de mão de obra. Mulheres incapazes de gerar filhos estão sujeitas ao divórcio. Desse modo, esse valor cultural alavanca o índice de nascimento: em média são 5 filhos por cada mulher Africana casada.

Além disso, a África possui o maior índice de poligamia do mundo, sendo que no Senegal, 47 por cento das uniões são poligâmicas. Embora tal prática seja incentivada pelas religiões tradicionais Africanas e pelo Islã, estes índices tendem a diminuir, como demonstra a Namíbia, onde em 1992 a modalidade poligâmica respondia a 24 por cento dos casamento e, em 2000, este número caiu para 12 por cento.

Os fatores que mais influenciam estes números são culturais e religiosos: a África é “profundamente e incuravelmente crédula” e a religião “impregna completamente a textura da vida cultural e individual na África.” (THIBANGI et al, 1993. apud BROWN e RADWANSKA-ZAYAC, 2007)

Enquanto o cenário norte Africano é dominado pelo Islã, uma religião pouco propensa ao sincretismo religioso, o sul da África é dominado pelo Catolicismo, extremamente misturado às religiões tradicionais. Ambos os sistemas apresentam vantagens e desvantagens, mas não cooperam para a estabilidade social e para o desenvolvimento do continente Africano.

Essa idéia é complementada pelo estudo de planejamento familiar apresentado por Ayaga Bawah, Patricia Akweongo e outros (1999), que demonstra a dificuldade de alcançar sucesso no uso de anticoncepcionais em Gana e as tensões sociais intergêneros que são resultado das tentativas de implementação de tais projetos. O papel da mulher nesta sociedade, delineado no estudo anterior, se confirma nas palavras das mulheres de Gana:

Tudo depende de nós, mulheres, pois sabemos os problemas que enfrentamos. Então precisamos nos proteger. Se a criança tem o que comer, vai a escola ou não, ou mesmo se a criança fica doente, é problema da mulher. O homem tem menos consciência destes eventos. [...] Enquanto mulher, não temos poder sobre nossos maridos, então não podemos dizer a eles para ir embora à noite. Por meio do planejamento familiar é que estamos conseguindo espaçar em três ou quatro anos os nascimentos.


Se seu marido não aprova [o método anticoncepcional] e você insiste, ele pode se divorciar. Ele até mesmo irá dizer que [...] por você ter utilizado o método sem o conhecimento dele, ele se divorciou de você.


As mulheres são tidas como propriedade dos maridos, que as adquirem por meio de pagamento em cabeças de víveres. Mas o que eles estão de fato adquirindo é uma máquina de gerar descendentes: “Se uma mulher não está menstruando e não está doente, ela não tem o direito de recusar o ato sexual, pois nós nos casamos com elas para ter filhos e é assim que fazemos filhos. Nós não nos casamos com elas para que cozinhem.” - assim define um membro masculino de tal sociedade.

Desta maneira, a religião, parte da cultura local, insere seus valores na união dos indivíduos, delegando direitos e deveres para que estes cumpram seus papéis dentro da estrutura normativa ideal criada socialmente. A cultura se perpetua mesmo em sociedades que sofreram modificações estruturais radicais pois está presente nas concepções mais pessoais dos indivíduos destas sociedades.

3 UNIÃO E INSTITUIÇÕES


Em contraste com tudo o que se viu em relação à África, um estudo realizado por Avner Grief (2005) aponta para o papel do matrimônio em uma das mais importantes mudanças culturais da Europa.

O modelo cooperativo Europeu era inicialmente baseado em grandes grupos de indivíduos relacionados por laços não apenas sanguíneos, mas também de proximidade, afinidade e laços culturais: modelos tribais como os Germânicos que vieram a derrotar o Império Romano Ocidental.

Mas ações da Igreja durante a Idade Média fizeram com que a família nuclear viesse a dominar as relações sociais. A instituição de leis para regulamentar o casamento e práticas cerimoniais vieram a minar as relações tribais, desencorajando o aumento da estrutura familiar por meio de adoção, poligamia, concubinato e divórcio. Em meados do século VIII, família significava pais, filhos e os parentes mais próximos, sendo que as tribos já não possuíam uma relevância institucional na Europa. Paralelamente, crenças individualistas começaram a aflorar, minando a difusão de conhecimentos e a participação coletiva informal nas instituições.

É possível ilustrar esse pensamento citando o filósofo Católico Baltazar Gracián (1601-1658):

Evitar familiaridades no trato. Que não devem ser usadas nem permitidas. Quem se rebaixa perde a superioridade que lhe dava sua inteireza, e atrás dela a estima. Os astros, por não roçarem conosco, conservam-se em seu esplendor. A divindade solicita decoro. A humanidade facilita o desprezo. As coisas humanas, quanto mais se têm, têm-se a menos; porque com a comunicação comunicam-se as imperfeições que o recato encobria. Com ninguém convém ter familiaridades: com os maiores, pelo perigo; com os inferiores, pela indecência; muito menos com a ralé, que é atrevida por néscia, e, não reconhecendo o favor que lhe fazem, presume obrigação. A familiaridade é parente da vulgaridade. [grifo do autor] (1996. p. 112)


O resultado dessas ações foi o modelo de desenvolvimento humano e econômico que temos na Europa, onde os indivíduos podem tomar decisões sobre o matrimônio, filhos, investimento, migração e riscos sem a interferência de membros fora da instituição familiar, mas ainda nos moldes delineados por uma cultura com fortes traços religiosos. Sem isso, a instituição de corporações – associações permanentes auto-governadas, criadas intencional e voluntariamente, baseadas em interesses privados – seria impossível. O aspecto negativo pode ser visto no envelhecimento da população Européia, um efeito colateral da remediação econômica que teve início na Idade Média.


O matrimônio demonstra assim seu valor como instrumento capaz de introduzir e manter valores nas relações interpessoais e afetar todo o contexto histórico e social de um agrupamento humano.



CONSIDERAÇÕES FINAIS


O matrimônio é um instrumento altamente eficaz tanto para manter traços, complexos e padrões culturais; como também para modificar inteiramente uma cultura. É indispensável para que o processo de endoculturação seja possível em sociedades complexas, especialmente nas sociedades modernas.

Se é no seio familiar que o indivíduo começa a sofrer o processo de endoculturação, é por meio do matrimônio que ele aceita perpetuar tal processo, assumindo o compromisso de passar adiante tudo aquilo que absorveu.

Críticas a isso já são encontradas em escritos tão antigos quanto A República de Platão, onde um modelo de matrimônio grupal é proposto, com o objetivo de romper com os valores e conceitos, para a formação da cidade ideal onde “estas mulheres todas serão comuns a todos esses homens, e nenhuma coabitará em particular com nenhum deles; e, por sua vez, os filhos serão comuns e nem os pais saberão quem são os seus próprios filhos, nem os filhos, os pais.” (2002. p. 152) Uma vez que é estabelecendo o sentimento de propriedade sobre outrem, a sociedade exerce seu poder.

O matrimônio é a brecha que os indivíduos abrem, de livre e espontânea vontade (ou assim pensam), para que as forças sociais adentrem os seus recônditos mais íntimos, impondo suas normas e transformando o casal em mero instrumentário funcional de sua perpetuação.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


MARCONI, Marina de Andrade; PRESOTTO, Zélia Maria Neves. ANTROPOLOGIA: Uma Introdução. São Paulo: Atlas, 6a ed., 2006.


MARRIAGE. In: WIKIPEDIA: the free encyclopedia. Wikimedia, 2006. Disponível em: Acessado em: 04 de abr. de 2007.


CHRISTIAN views of marriage. In: WIKIPEDIA: the free encyclopedia. Wikimedia, 2006. Disponível em: Acessado em: 04 de abr. de 2007.


CODEX Iuris Canonici, Português. CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO. Promulgado por João Paulo II, Papa. Traduzido pela CNBB. S. l. : Loyola, 7a ed., s. d.


CRITICISMS of the institution of marriage. In: WIKIPEDIA: the free encyclopedia. Wikimedia, 2006. Disponível em: Acessado em: 04 de abr. de 2007.


TZU, Sun. A ARTE DA GUERRA: Os Documentos Perdidos. Thomas Cleary (org). Rio de Janeiro: Record, 5a ed., 1999.


GREIF, Avner. FAMILY STRUCTURE, INSTITUTIONS, AND GROWTH: The Origin and Implications of Western Corporatism. S. l. : Stanford University, 2005. Disponível em: Acesso em: 04 de abr. de 2007.


BROWN, Christopher; RADWANSKA-ZAYAC, Bozena. LESSON 5: Social and Cultural Issues. S. l. : Southern Center for International Studies, 2007. Disponível em: Acesso em: 04 de abr. de 2007.


BAWAH, Ayaga et al. Women's Fears and Men's Anxieties: The Impact of Family Planning on Gender Relations in Northern Ghana. In: STUDIES IN FAMILY PLANNING. S.l. : s.n., 1999. Disponível em: Acesso em: 04 de abr. De 2007.


DREWS, Cláudio et al. KARL MARX, ÉMILE DURKHEIM E MAX WEBER: por trás das idéias sociológicas. Rio Grande: Faculdades Atlântico Sul, 2007. Artigo para a disciplina de Sociologia Aplicada à Psicologia.


GRACIÁN, Baltazar. A ARTE DA PRUDÊNCIA. Traduzido por Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martin Fontes, 1996.


THOREAU, Henry David. A DESOBEDIÊNCIA CIVIL. Traduzido por Sérgio Karam. Porto Alegre: L&PM, 2002.


PLATÃO. A REPÚBLICA. Traduzido por Pietro Nassetti. 1ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2002.

8 comentários:

Rosali Alves - Desenhista disse...

Na "origem da Familia e da propriedade privada" ( o titulo não é bem esse, eu sei), do Engels, dá pra entender bastante coisa. recomendo.

Sheila C.S. disse...

Erick Fromm descreve em seu livro "A Arte de Amar" (livrinho da década de 50, eu acho...) três formas da desintegração do amor na sociedade e uma delas é o amor como "idéia de equipe". E diz assim:

"Nosso caráter é engrenado para trocar e receber, para transicionar e consumir:tudo, os objetos espirituais como os materiais, torna-se objeto de troca e de consumo.
A situação, no que se refere ao amor, corresponde, como não pode deixar de ser, a esse caráter social do homem moderno. Autômatos não podem amar; podem trocar seus "fardos de personalidade" e esperar um bom negócio. Uma das expressões mais significativas do amor, e especialmente do casamento, nessa estrutura alienada, é a idéia de equipe. Em qualquer número de artigos escritos sobre casamento feliz, o ideal descrito é o da equipe que funcione lubrificadamente. Essa descrição não difere muito da de um empregado que funcione lubrificadamente: ele deve ser razoavelmente independente, cooperativo, tolerante e, ao mesmo tempo, ambicioso e agressivo.
Assim, diz-nos o conselheiro matrimonial, o marido deve compreender sua mulher e ser-lhe de auxílio. Deve fazer comentários favoráveis sobre seu vestido novo, sobre um prato gostoso. Ela, por sua vez, deve compreendê-lo quando ele chega em casa cansado e resmungão, deve ouví-lo atentamente quando ele fala de seus aborrecimentos nos negócios, não deve encolerizar-se, mas mostrar-se compreensiva, se ele esquece de que ela faz anos. Toda esta espécie de relações, na verdade, vem a dar na bem lubrificada relação entre pessoas que permanecem estranhas a vida inteira, que nunca chegam a uma relação central, mas que mutuamente se tratam com cortesia e que tentam fazer com que a outra se sinta melhor.
Neste conceito de amor e casamento, a principal ênfase é colocada no encontro de um refúgio para o que, de outra forma, seria insuportável sentimento de solidão. No "amor" encontra-se, afinal, um porto ao abrigo da solidão. Forma-se uma aliança de dois contra o mundo, e esse egoísmo a dois é enganosamente tomado por amor e intimidade."

Claro, há um recorte econômico-social aí, e atualmente talvez os exemplos sejam outros, mas achei interessante o conceito desenvolvido, eu pelo menos nunca havia concebido o casamento desse ponto-de-vista, mas bem que faz sentido...

Em Vanila Sky, o diretor Cameron Crowe, no comentário do filme, também fala qualquer coisa nesse gênero (agora lembrei disso, mas de forma um tanto difusa...) sobre a relação que aparece logo na primeiras cenas entre Cameron Diaz e Tom Cruise, sobre um tratamento meio que teatral, característico dos papéis assumidos em um casamento...

...então, abço e até o próximo!

Psicólogo Cláudio Drews disse...

Vendo estes comentários fico feliz, pois esta é a idéia do blog: construir, somar conhecimento. E conhecimento de qualidade.
Penso num contraponto à visão negativa das trocas em um casamento ou qualquer tipo de relação amorosa: em vários momentos do pensamento da humanidade, foi idealizado o amor platônico... Aquele amor que não se concretiza a dois, que é unilateral... Pode se dar de duas formas, eu imagino: a) a pessoa não conhece e não trava grandes contatos com o "objeto do desejo"; b) a pessoa vem a conhecer profundamente o "objeto do desejo", mas não realiza a relação. Na primeira forma a pessoa não ama nem deseja realmente a outra pessoa, mas um construto de sua própria subjetividade, uma entidade "virtual". Não consigo deixar de associar tal opção ao medo da frustração, medo da realidade... Na segunda forma a pessoa pode vir a conhecer o "objeto do desejo" melhor e mais intimamente - enquanto pessoa - do que um par amoroso, como nas grandes amizades... Não há necessidade para tal objeto, por exemplo, para esconder impulsos e desejos que vão e vem, pequenos deslizes, imperfeições, estas coisas... Por outro lado a convivência não é total e a situação que se tem é diferente da situação de uma relação amorosa. Diferente no quê? Penso que é justamente no que se espera da outra parte.
Amor é uma via de mão dupla, não vejo como possa ser diferente. O ser humano busca fugir da solidão, mas a solidão pode ser aplacada com amigos, com colegas e até com bichinhos de estimação... É mais do que fugir da solidão, é a busca pela outra metade talvez? Não sei... Nascemos completos? Acho que não, nossa espécie precisa de dois indivíduos para se reproduzir naturalmente... Certamente existem mecanismos genéticos que criam uma pressão por meio de hormônios que nos levam a buscar "a outra metade". É justo esperar compreensão, carinho, fidelidade? Talvez, acho que sim... A empreitada de uma união não é fácil. Mas uma coisa é esperar algo, outra coisa é obter.
Neste sentido é que as convenções sociais são prejudiciais. Elas criam vínculos irreais que são de difícil dissolução... Realmente dificultam a retificação de erros cometidos. As pessoas não vêm com um "tag" na testa atestando caráter e compatibilidade de personalidade e objetivos. No jogo amoroso as pessoas mentem, distorcem a realidade, se mostram como algo que não são de verdade... Se a verdade demora demais para surgir, pode ser que já tenham se estabelecido alguns laços impostos pela sociedade e aí tudo fica mais complicado.
Sempre tenho em mente aquela frase do Thoreau: "O melhor governo é aquele que menos governa." - algumas coisas são necessárias, pois o ser humano não é muito racional boa parte do tempo, mas outras coisas são muito dispensáveis e não atendem aos interesses dos indivíduos, nem quando isolados, muito menos quando em pares... Pelo menos dificilmente atendem aos interesses legítimos... O casamento é uma dessas coisas, assim entendo.
Vínicius de Moraes já dizia:
"Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure."

Sheila C.S. disse...

Bem... sobre as suas últimas considerações eu fico em uma posição desconfortável para opinar já que sou casada... Sendo assim, não posso dizer que considero o casamento totalmente dispensável, mas também não discordo... Acredito que a tomada de decisão que envolve o casar é baseada em questões totalmente frágeis e convencionais (levando em conta o quadro social que vivemos hoje) e que aí sim, a relação se torna insustentável quando a realidade a dois se apresenta.
Gley Costa em seu livro "O Amor e seus Labirintos" dedica um capítulo para a questão "Por que casamos?"... Em certo ponto ele coloca que as pesquisas sobre casamento que incluem essa pergunta se deparam com respostas vagas que não justificam um investimento afetivo tão grande e com tantos riscos de fracassar, sendo assim, embora as pessoas desejem muito se casar, não sabem muito bem porque o fazem. Dessa forma, ele aponta que grande parte das motivações relacionadas com o casamento são inconscientes. A partir daí ele sugere algumas questões que levam o indivíduo a buscar o casamento. São elas:

* a qualidade dos vínculos, criados durante a infância, envolvendo um casal altamente valorizado pela criança. Esse modelo de relacionamento tenderá a ser recriado pelo indivíduo ao longo de seu desenvolvimento encontrando no casamento a mais clara possibilidade de repetição desta experiência...
*oportunidade que o casamento oferece ao indivíduo de obter prazer sexual. O casamento proporcionará uma possibilidade ímpar de competir e de se identificar com os pais com um mínimo de sentimento de culpa...
*atender à nossa necessidade de companhia e segurança...
*possibilidade de realizar a fantasia, acalentada desde a infância, de nos tornarmos pai e mãe e, assim, perpetuarmos-nos na espécie, satisfazendo nossos anseios de eternidade.

Depois ele entra em uma outra questão que vai um pouco além... Por que casamos com quem casamos? ...mas não entrarei nesse ponto, visto que gostaria de fazer algumas outras relações com algumas partes da sua resposta...

Você questiona sobre uma necessidade de amor proveniente do ser humano que não cabe apenas no argumento fugir da solidão...
Erick Fromm coloca que o abrigo da solidão é apenas um dos motivos.
Uma razão maior seria a superação da separação humana... e eu gosto desse argumento. (...mas sou suspeita, já que tenho uma leve tendência p/ a psicanálise...)

"Quando o homem nasce - a raça humana assim como o indivíduo - é lançado fora de uma situação que era definida, tão definida quanto os instintos, para uma situação indefinida, incerta e exposta. Somente há certeza com relação ao passado - e, quanto ao futuro, apenas com relação à morte.
O homem é dotado de razão; É A VIDA CONSCIENTE DE SI MESMA; (acho linda essa afirmação...)tem consciência de si, de seus semelhantes, de seu passado e das possibilidades de seu futuro. Essa consciência de si mesmo como entidade separada, a consciência de seu próprio e curto período de vida, do fato de haver nascido sem ser por vontade própria e de ter de morrer contra sua vontade, de ter de morrer antes daqueles que ama, ou estes antes dele, a consciência de sua solidão e separação, de sua impotência ante as forças da natureza e da sociedade, tudo isso faz de sua existência apartada e desunida uma prisão insuportável. Ele ficaria louco se não pudesse libertar-se de tal prisão e alcançar os homens, unir-se de uma forma ou de outra com eles, com o mundo exterior."

Eu, particularmente acho essas palavras do autor muito emocionantes... penso que se trata de uma visão bastante ampla sobre uma motivação humana inerente para o amor. Ampla, porém bastante satisfatória para mim... (claro, do ponto de vista psicanalítico.)

Para finalizar, embora se tenha muito a discutir sobre esse assunto, ainda mais se tratando de um assunto que muito me desperta a atenção, gostaria de registrar minha concordância com a questão sobre os vínculos irreais facilitados pelas convenções sociais e indagá-lo sobre algo que você escreveu...
Nas últimas linhas quando vc argumenta sobre coisas dispensáveis aos interesses do indivíduo, você usa a expressão "interesses legítimos"... o que seriam esses interesses legítimos? Desculpa se vc se refere aos já mencionados no meio do seu texto: carinho, compreensão, fidelidade... mas fiquei me perguntando sobre o que seriam interesses legítimos, já que essa questão pode ser vista de forma universal ou bastante particular, na primeira hipótese penso que o argumento de Erick Fromm consegue dar uma direção, mas se pensarmos em cada indivíduo, isso fica mais complicado, pois aí entra a subjetividade...

Bem... algumas questões ficam p/ próxima... algumas coisas que vc colocou me motiva a introduzir o assunto sobre mitologia e amor eros... mas vamos com calma... preciso sempre estar domando a minha tendência em ser prolixa, já que muitas vezes isso não se configura como uma qualidade... (tenho notado isso... hehe...)

Deixo uma de Mario Quintana, uma de minhas preferidas... Na maioria das vezes, independente das motivações existentes, no campo do amor todos são passíveis de se perderem...

DA CONDIÇÃO HUMANA
"Se variam na casca, idêntico é o miolo,
Julguem-se embora de diversa trama:
Ninguém mais se parece a um verdadeiro tolo
Que o mais sutil dos sábios quando ama."

Psicólogo Cláudio Drews disse...

"[..]Em certo ponto ele coloca que as pesquisas sobre casamento que incluem essa pergunta se deparam com respostas vagas que não justificam um investimento afetivo tão grande e com tantos riscos de fracassar, sendo assim, embora as pessoas desejem muito se casar, não sabem muito bem porque o fazem."

Da maneira como vejo as coisas, esta frase responde a pergunta a que se propõe: uma coisa é investimento afetivo, outra coisa é prestação de contas para a sociedade. As pessoas não têm nenhuma dúvida quanto a afetividade, "amar é certeza", não é mesmo? Mas amar é querer bem, querer estar junto e, embora envolva um planejamento para o futuro, "os seres humanos são péssimos em projeções futuras no que diz respeito à felicidade". (Daniel Goleman)
Eu não vejo relação entre afetividade e casamento, quando casamento é compreendido no sentido de contrato social (legal, jurídico) e perpetuação de uma dada crença religiosa.
Uma coisa é gostar profundamente de alguém, outra coisa é dar continuidade à sistemas sociais e religiosos anti-naturais com necessidades econômicos vorazes que dependem de cidadãos [in]conscientes e almas tementes. (:
Quando amamos e nos comportamos como tal, podemos traduzir, sem erro, nossas ações nas palavras: "Te amo, te quero, etc".
Quando se dão os rituais do casamento, a relação do casal se abre para a sociedade. O que se afirma é: "Este homem pertence legalmente a esta mulher, e vice-versa. Eles concordam em produzir uma prole que será assimilada pela cultura vigente e obdecerá à ordem desta, pagando impostos, respeitando as leis impostas, etc". Valendo o mesmo no que diz respeito à religião. No meio de tantos papéis para assinar, festas para planejar, atos ritualísticos para ensaiar, a afirmação "eu te amo" ainda tem seu lugar, pois é preciso ser muito incosequente para tomar estas atitudes (como eu fui na minha adolescência) ou muito apaixonado (paixão = loucura).
Repito o que disse no artigo: nenhum destes rituais é garantia de uma sobrevida maior para o amor. Pelo contrário, creio eu, pois torna a relação um meio de negociação e manipulação, onde interesses e vaidades salgam a terra onde o amor foi plantado.
Não creio que seja a toa que as amizades tendem a ser mais duradouras e estáveis que os casamentos, e não é só pelo motivo dos amigos não viverem sob o mesmo teto ou acordarem na mesma cama, mas é pela liberdade de ir e vir que desfrutam. Sem esta, qual é a base do respeito que se tem?
"Pisei na bola com meu amigo? Melhor eu pedir desculpas, acertar as contas, fazer algo positivo a respeito..."
"Pisei na bola com meu marido/esposa? Azar, se ele(a) me deixar, a dor de cabeça vai ser enorme."
Além, é claro, das matizes de "fracasso" que toma tal situação de divórcio. A união toma tal dimensão que a culpa adquire dimensões abraâmicas! Quando na verdade não há nada mais natural do que chegar a conclusão de que não era exatamente aquilo que se queria para si.
Os direitos legais dos pares, incluindo os direitos dos filhos, podem ser garantidos pelos mecanismos legais que permitem uniões estáveis e deveres de maternidade/paternidade, pensões, heranças, etc. Isso é necessário e é bom. Mas o casamento em si não.
Caso o casal se ame enternamente e resolva seus eventuais conflitos de maneira positiva para ambos, o casamento não irá fazer nenhuma diferença caso aconteça ou não. O casamento só faz diferença quando as coisas dão errado. Ah, e é claro, serve para movimentar o comércio (roupas, presentes, salões de estética, revistas, etc), encher a barriga de uma multidão por uma noite, gerar fotos de um momento produzido e, finalmente mas não menos importante, gerar honorários jurídicos. (:
Veja bem, não desejo o mal para a união e o amor de ninguém. Acho que o amor entre duas pessoas é algo do melhor que os seres humanos têm para desfrutar. Construir uma vida juntos, partilhando interesses e projetos, a criação dos filhos, amadurecer junto com alguém que se gosta, é difícil imaginar coisas mais lindas do que estas, e respeito muito isso tudo. Por respeitar estas coisas, me manifesto contra isso que vejo como um mecanismo social não relacionado e não benígnio à relação a dois.
Veja o amor de um pai por um filho por exemplo, este não depende de papéis, de rituais, não acaba, não há traições neste tipo de relação. O perdão é a lei, pois nada que se faça irá anular a responsabilidade daquele que pôs mais uma vida no mundo.
Amor entre um casal é diferente, existe um limiar diferente. Será que é ruim? Será que é bom? A vida é tão rica em experiências que não consigo ver nada de errado no projeto natural das coisas. O amor dura enquanto for bom. Quando não é mais, acaba. Se houver respeito, talvez sobreviva a amizade, caso contrário, pessoas sãs seguem suas vidas em paz e buscam algo melhor para si. Neste cenário, o contrato do casamento só aumenta o luto da perda, cria novas variáveis ambientais de aversão...
Mas esta é a minha opinião pessoal. E opiniões são como diria Clint Eastwood, no filme Dirty Harry, e suas palavras que não vou reproduzir aqui. :D
Desejo que no teu casamento dê tudo sempre certo.

Psicólogo Cláudio Drews disse...

Ah... E quanto a superar a separação humana... Não somos idênticos no miolo... Sob a pele nossa fisiologia é muito semelhante, até que se chega ao cérebro. Macroscopicamente são todos muito parecidos, até que se considere as sinapses, onde a informação é codificada. As experiências vividas, nossas memórias, aquilo que realmente somos. O motivo pelo qual pensamos como pensamos, agimos como agimos e amamos a quem amamos, em última instância, de maneira singular.
Hoje no banho, motivado pelo livro "Memória" do Iván Izquierdo, estava pensando de forma análoga nisso... A física newtoniana admite 3 dimensões (sendo o tempo a 4a dimensão), outras teorias mais avançadas na física admitem mais dimensões, na matemática são admitidos objetos de muitas dimensões, 11 ou mais... Nem sei... Mas, considerando que cada ser humano é um Universo contido em si, uma vez que nosso cérebro replica a realidade que nos cerca e nosso entendimento subjetivo da realidade, a humanidade admite quase 7 bilhões de dimensões, tão inacessiveis entre si quanto é a experiência subjetiva de cada ser humano, aquilo que nos define enquanto indivíduo.
Não basta um universo próprio, que é tão ou mais misterioso e inexplorado quanto o universo exterior? Para que este afã de colidir dois universos? (:

Luciana Oliveira disse...

Claudio,
consultei seu blog para produzir conteúdo para meu tcc, porém para colocar nas referências preciso do seu nome e sobrenome, o qual não achei no blog, você poderia me informar?
Att,
Luciana Oliveira

Psicólogo Cláudio Drews disse...

Oi Luciana!

Meu nome é Cláudio Raul Drews Jr. Para citações é DREWS, C. R. Jr.

Abs!