Fazer um experimento mental é utilizar um cenário hipotético para poder melhor entender a maneira como as coisas realmente são ou como as coisas poderiam ser. O termo original Gedankenexperiment foi criado por Hans Christian Ørsted, um físico e químico dinamarquês que teve participação marcante no movimento filosófico pós-kantiano, além de ser famoso por ter descoberto a relação entre a eletricidade e o magnetismo, o electromagnetismo.
Embora o termo seja relativamente recente, o conceito remonta à grécia antiga, sendo que na filosofia alguns dos exemplos mais conhecidos encontram-se nas obras de Platão e de Sócrates, e na física já existiam alguns exemplos documentados desde a época de Galileu Galilei.
Os experimentos mentais fazem uso de perguntas cuidadosamente estruturadas e bem definidas para, por meio do raciocínio subjuntivo (dependente de), chegar a uma conclusão a priori, que seja verdadeira sob qualquer circunstância lógica.
Dentre alguns experimentos mentais que andei lendo, um dos mais interessantes foi aquele que se tornou conhecido como Maria, a supercientista, proposto por Frank Jackson, um filósofo australiano, em 1982:
"Maria é uma cientista brilhante."
"Tudo aquilo que Maria vê, está nas cores preto e branco."
"Maria sabe tudo o que há para saber sobre neurofisiologia da visão." - o que implica, necessariamente, que ela tenha algum conhecimento sobre cores.
Acredito que o autor quisesse propor um cenário em que a protagonista soubesse tudo sobre cores e o modo como percebemos as cores. Enquanto optar por descrevê-la como uma neurofisiologista da visão tenha criado um cenário crível em que podemos conceber alguém que saiba tudo sobre o comprimento de ondas de cores, neurofisiologia humana e o modo como percebemos as cores, talvez fosse mais adequado descrevê-la como uma especialista em pintura artística.
Tal proposição seria mais difícil de ser concebida, pois abrangeria com mais clareza a importância da maneira como percebemos as cores, e o quanto o conhecimento da supercientista seria de segunda mão, ou indireto. Neste caso, talvez Maria não soubesse muito sobre o comprimento de onda das cores, mas saberia que as cores podem despertar sentimentos nos seres humanos. Ela estudaria as pinturas, podendo observá-las apenas em preto e branco e saberia, por meio de relatos documentados e estudos de outros especialistas, que a combinação das cores usadas em determinada pintura ajuda a evocar esse e aquele sentimento, nesta e naquela medida. Ela saberia que uma pintura como O Grito, de Edvard Munch, desperta um sentimento de angústia, desintegração e opressão; e talvez, tendo sentido estes sentimentos em algum momento de sua vida, ela fosse remetida a eles lendo a respeito nos estudos de outros especialistas em arte.
Neste caso, proponho que imaginemos que Maria saísse do quarto preto e branco, e a primeira coisa com que se deparasse fosse o quadro O Grito. Sem dúvida que ela saberia o que esperar emocionalmente neste momento, mas sua experiência subjetiva acrescentaria algo a todo aquele conhecimento acumulado durante seus estudos?
Você pode estar pensando agora: "Mas que pergunta idiota, é claro que a resposta é sim!" - e eu não discordo de você, a experiência humana é muito mais rica do que aquilo que podemos representar pelos meios disponíveis nas ciências naturais ou da linguagem formal. Mas existem alguns acadêmicos que acreditam não ser este o caso. Tais pessoas se fundamentam naquilo que julgo ser uma visão limitada do mundo e se utilizam das limitações da linguagem e do próprio conhecimento científico para defender esta visão (anfibologia proposital aqui).
Mês passado li um artigo na revista FILOSOFIA Ciência e Vida, ano II, nº 17 , intitulado MARY E O TOMATE ou os qualia são relevantes para o conhecimento do mundo? escrito por João de Fernandes Teixeira, PhD. Nele, o autor descreve sua versão do experimento mental, mais atual e, creio eu, mais bem formulada do que a original, ainda que mais econômica em palavras; e prossegue utilizando-se das palavras do próprio Jackson para descrever que a visão do fisicalista, que "[...] implica na tese de que toda informação é informação a respeito do mundo físico, ou seja, se sabemos a totalidade de fatos físicos, sabemos a totalidade de fatos que há no mundo."
Mas seu objetivo é justamente o oposto daquele de Frank Jackson. Para o autor, a experiência em primeira mão não irá acrescentar nada de relevante para quem já detêm o conhecimento teórico, classificando o experimento mental de Jackson como um argumento do conhecimento.
Eis o primeiro argumento que Teixeira usa, parafraseando Dennett (Daniel, filósofo americano), para chegar a esta conclusão: "É possível, por exemplo, refutar a história de Mary argumentando que ela não aumenta seu repertório de conhecimentos após acordar da neurocirurgia. Pois afinal de contas, não é uma das premissas do experimento que ela sabia tudo a respeito do cérebro humano e de como ele processa as cores?" Bom, de fato, a Maria (ou Mary) do experimento mental sabe tudo a respeito do cérebro humano e de como ele processa as cores, mas isso é diferente de saber tudo o que há para saber sobre as cores e o que as mesmas provocam no ser humano. Logicamente não basta dizer que as cores são capazes de provocar emoções, uma vez que poderia ser levantada a possibilidade de que, uma vez que emoções são estados físicos do sistema nervoso central, Maria poderia saber tudo sobre como elas se processam (é um experimento mental, tal argumento é válido). Com isso, voltaríamos a pergunta original, suscetível à mesma refutação já descrita, mas tornamos um pouco mais claro o meu objetivo ao usar as palavras experiência de primeira mão, ou invés das palavras experiência subjetiva.
Para sustentar o argumento anterior, Teixeira cita um outro experimento mental, proposto por Dennett, que possui o mesmo desenvolvimento do experimento mental original proposto por Jackson, mas termina com Maria sendo apresentada a uma banana azul, propondo as seguintes perguntas: "Será que ela passaria a acreditar que as bananas são azuis? Ou passaria ela acreditar que o que é azul deve ser chamado de amarelo?"Ao que dá o seguinte desfecho: "Certamente não. Segundo Dennett, o mais provável seria que ela exclamasse: 'Vocês estão tentando me enganar, as bananas são amarelas e essa é azul.'"
Respondo a esse argumento, sem questionar o argumento em si mas a sua finalidade, propondo a seguinte pergunta: qual seria o primeiro impulso de Maria ao constatar o engodo? Talvez sejamos levados a imaginar ela inicialmente perplexa e, logo em seguida, achando graça da "brincadeira"; mas devemos admitir que ela poderia ter ficado ofendida e sentido ira, especialmente sendo ela detentora de títulos que lhe concedem algum status, por ser submetida àquilo que ela poderia encarar como um teste de seus conhecimentos.
É inútil argumentar se esta seria uma reação exagerada e inadequada da parte dela, pois os seres humanos não se portam de maneira ideal em todas as situações, é um aspecto de algo chamado personalidade e que não pode ser descrito em termos físicos.
Também não acredito que utilizando-me do espectro de reações emocionais possíveis de Maria ao experimento proposto por Dennett, eu não esteja fugindo do foco deste tópico, uma vez que compreendo que qualia abrange o todo daquilo que a experiência humana é capaz de produzir em resposta a cada estímulos físico possível que seja percebido.
Teixeira continua, afirmando que o experimento mental proposto por Jackson está mal montado pois a neurociência e a Física são "disciplinas que mudam no decorrer do tempo e que no futuro podem vir a ter conceitos que nem sequer podemos imaginar no presente." Este argumento foi o que me levou a explicar brevemente a origem e o conceito de experimentos mentais no início deste post. O quê pensaria o Sr. Teixeira de um experimento mental como o Homem do Pântano?
Muito interessante, também, é esta afirmação seguida de um questionamento: "Mas há ainda outras formas de objetar o experimento mental de Mary. Podemos insistir na tese de que ela não adquire novo conhecimento ao ter a experiência de um tomate vermelho. Nesse caso, podemos perguntar se a cor vermelha corresponde realmente a algo que está no mundo ou não seria apenas alguma coisa que ocorre estritamente no âmbito da experiência subjetiva de Mary, por assim dizer, na cabeça dela - e das outras pessoas. E se for dessa maneira, nesse caso, seria esse conhecimento de quê? Será algo real?"
Caro Sr. Teixeira, ao levantar tais questionamentos o senhor não está objetando à finalidade do experimento original, mas concordando com as conclusões do mesmo. Se não fosse a nossa subjetiva percepção da realidade, jamais questionaríamos a mesma.
"Um robô pode não enxergar a vermelhidão dos tomates, mas, mesmo assim, obter as informações necessárias para agir sobre eles de forma adequada." - Sim, sem dúvida. Um robô é construído para agir de forma adequada. Os seres humanos agem de forma adequada, em boa parte do tempo. Nem sempre. Não é surpreendente me deparar com um resgate de argumentos mecanicistas (deveríamos atualizar para digitalista?) na época em que vivemos, especialmente quando o assunto envolve filosofia da mente; mas simplificar a afirmação anterior, no contexto em que está inserida, simplifica demais as perguntas de grande importância nas quais a filosofia da mente possui participação imprescindível na busca de respostas, como a viabilidade de uma inteligência artificial forte e a natureza que teria a consciência tal entidade.
Ainda quanto a conclusão do Sr. Teixeira, de que os qualia, ou experiência subjetiva ou de primeira mão, não acrescenta nada ao conhecimento humano, penso que são bons argumentos para refutar tal conclusão, o valor da ciência experimental e do conhecimento a posteriori, que é exclusivamente produzido pela mesma; o valor, na Academia, dos estágios práticos; e o conhecimento produzido na práxis que se dá com o maturamento profissional do indivíduo.
Muitos dos debates que se deram a cerca deste experimento foram propelidos pelos contextos utilizados nos argumentos da sua formulação original, dirigidos para contestar um pensamento que, uma vez formulado na interdisciplinariedade, faz com que conceitos mentalistas a priori interajam com conceitos a posteriori das ciências naturais. Fosse esta uma discussão meramente filosófica e estética, e tendo sido utilizados outros argumentos, seriam bem mais escassas as objeções.
Quero, ainda, adentrar um pouco mais no âmbito fisicista, trazendo para este post algo que é de conhecimento comum, que são as diferentes formas em que se manifestam os sentidos entre as espécies e na generalidade da espécie humana em si. Existem flagrantes variações que podem ser quantificadas experimentalmente e, até mesmo, qualificadas nos sentidos que possuímos para perceber a realidade. Tais variações estão ligadas a genética do indivíduo e, enquanto são mais evidentes em suas graduações quantitativas, têm seu aspecto qualitativo manifestado, mais comumente, no sentidos do paladar e do olfato e, em casos mais raros, nos sinestetas.
Uma questão que muitas vezes se perde nas discussões acadêmicas mas que está na raiz do experimento da Maria, é como nós vemos as cores. Crianças com daltonismo enxergam o mundo de maneira diferente, e até serem diagnosticadas podem sofrer embaraços na escola, em jogos que dependam de cores ou no estudo de mapas, e tais embaraços podem ser determinantes da formação da personalidade destas crianças. Estes são fatos completamente calcados no fisicismo, com relevância prática, e que confirmam de maneira facilmente compreensível o experimento proposto por Jackson.
Como diria Wittgenstein, não podemos compreender o que um leão fala, pois não vemos o mundo da mesma maneira que um leão vê. E isto não é verdadeiro apenas em uma abordagem lingüística ou filosófica, pois a mesma está atrelada às diferenças físicas entre as espécies. Nossa visão de mundo e a maneira como interagimos com o mesmo é construída tendo como base, além de nossas experiências, a maneira como podemos perceber e a compreensão que somos levados a ter sobre estas experiências.
Frank Jackson, que foi aluno de Wittgenstein, veio a capitular e crer que argumentos do conhecimento contra o fisicalismo, como o experimento de Maria e o argumento do Zumbi Filosófico podem levar a conclusões erradas. Não discordo dele nesta afirmação, uma vez que argumentos mentalistas contra o fisicalismo estarão indo contra o conhecimento que determina nossa capacidade de perceber, de raciocinar, de criar e fazer uso de experimentos mentais, e até de nossas diferenças nestas habilidades. Da mesma maneira, o fisicalismo irá percorrer um caminho tortuoso e chegar a conclusões duvidosas questionando o mentalismo, pois estará questionando sua própria razão de existir, a consciência humana.
Prova disso pode ser encontrada num exercício de comparação classificativa entre a inteligência humana e a inteligência atual de um computador, no tocante a perceber problemas em seu meio e resolvê-los. Tal medição, ainda que consideravelmente extrapolativa, pode ser obtida por meio de um computador normal e um programa de solução não assistida de problemas como o Soar ou com autômatos como os da RoboCup. Suas inteligências ficam, comparativamente, no nível de um molúsculo gastrópode, em relação à inteligência humana.
Por que, então, um computador como o DeepBlue, capaz de vencer um campeão mundial de xadrez, não se torna consciente? Nós, seres humanos, com nossos cérebros que não evoluíram nada ou não evoluíram muito nos últimos 200.000 anos, somos capazes de realizar milhões de cálculos simultâneos, alguns em nível inconsciente, como noções de posicionamento e força provida pelo cerebelo, mas não somos capazes de calcular matematicamente tão rápido quanto um computador. Imagina-se, hoje, que os computadores estão nos alcançando em capacidade de processamento bruto, mas ainda estão longe quando o assunto é consciência. O que falta? Seria os meios de interagir com o mundo? Não é tão difícil equipar um computador com sentidos que mimetizem, e em alguns casos e situações superem, os sentidos humanos. Ainda assim, mesmo equipado com todos os sentidos que temos a disposição, um computador não se tornaria imediatamente consciente.
Estaria aí o valor dos qualia? Enquanto sim, os qualia tem algo haver com essa questão, a resposta a que chego é: não exatamente. O ser humano cria a máquina, e na máquina o ser humano reproduz, ainda que grosseiramente, ao próprio ser humano e a natureza por ele conhecida. Até mesmo na sua variação genética. Tão variadas quanto são os humanos, são suas criações. Se nelas imprimimos nossas variações físicas enquanto espécie, é nas artes, na estética, que imprimimos nossos qualia.
Assim como nossas variações físicas possuem um importante papel no modo como iremos interagir e compreender o mundo, no momento em que imprimirmos arte em nossas criações físicas, estas também poderão adquirir características subjetivas de nossa experiência, de maneiras que no presente ainda é difícil conceber, se não de modo pitoresco como se dá na ficção científica popular.
Já chegou o momento de perceber que mentalismo e fisicalismo andam juntos e são interdependentes, pois novas questões esperam respostas e dependem da clareza de que ambos são parte daquilo que somos, para que então possamos progredir.
Embora o termo seja relativamente recente, o conceito remonta à grécia antiga, sendo que na filosofia alguns dos exemplos mais conhecidos encontram-se nas obras de Platão e de Sócrates, e na física já existiam alguns exemplos documentados desde a época de Galileu Galilei.
Os experimentos mentais fazem uso de perguntas cuidadosamente estruturadas e bem definidas para, por meio do raciocínio subjuntivo (dependente de), chegar a uma conclusão a priori, que seja verdadeira sob qualquer circunstância lógica.
Dentre alguns experimentos mentais que andei lendo, um dos mais interessantes foi aquele que se tornou conhecido como Maria, a supercientista, proposto por Frank Jackson, um filósofo australiano, em 1982:
"Maria é uma cientista brilhante que, por algum motivo, é forçada a investigar o mundo dentro de um quarto onde todos os objetos são nas cores preto e branco, inclusive o quarto. Sua ferramenta de estudo é um monitor preto e branco. Ela se especializa em neurofisiologia da visão e adquire, suponhamos, toda informação física que disponível sobre o que acontece quando nós vemos tomates maduros, ou o céu, ou uma banana, e usa termos como vermelho, azul, amarelo, etc. Ela descobre, por exemplo, qual a combinação de comprimentos de onda advindas do céu que estimulam a retina e exatamente como isto produz, por meio do sistema nervoso central, a contração das cordas vocais e a expulsão do ar dos pulmões que resultam na vocalização da sentença 'o céu é azul.' [...] O que irá acontecer quando Maria puder sair de seu quarto preto e branco ou receber um monitor colorido? Ela irá aprender alguma coisa ou não?"Imagino que você, assim como eu, tenha encontrado alguns problemas nas proposições acima; mas tais problemas não invalidam a questão levantada por seu autor. Vamos analisar quais são os principais argumentos do experimento:
"Maria é uma cientista brilhante."
"Tudo aquilo que Maria vê, está nas cores preto e branco."
"Maria sabe tudo o que há para saber sobre neurofisiologia da visão." - o que implica, necessariamente, que ela tenha algum conhecimento sobre cores.
Acredito que o autor quisesse propor um cenário em que a protagonista soubesse tudo sobre cores e o modo como percebemos as cores. Enquanto optar por descrevê-la como uma neurofisiologista da visão tenha criado um cenário crível em que podemos conceber alguém que saiba tudo sobre o comprimento de ondas de cores, neurofisiologia humana e o modo como percebemos as cores, talvez fosse mais adequado descrevê-la como uma especialista em pintura artística.
Tal proposição seria mais difícil de ser concebida, pois abrangeria com mais clareza a importância da maneira como percebemos as cores, e o quanto o conhecimento da supercientista seria de segunda mão, ou indireto. Neste caso, talvez Maria não soubesse muito sobre o comprimento de onda das cores, mas saberia que as cores podem despertar sentimentos nos seres humanos. Ela estudaria as pinturas, podendo observá-las apenas em preto e branco e saberia, por meio de relatos documentados e estudos de outros especialistas, que a combinação das cores usadas em determinada pintura ajuda a evocar esse e aquele sentimento, nesta e naquela medida. Ela saberia que uma pintura como O Grito, de Edvard Munch, desperta um sentimento de angústia, desintegração e opressão; e talvez, tendo sentido estes sentimentos em algum momento de sua vida, ela fosse remetida a eles lendo a respeito nos estudos de outros especialistas em arte.
Neste caso, proponho que imaginemos que Maria saísse do quarto preto e branco, e a primeira coisa com que se deparasse fosse o quadro O Grito. Sem dúvida que ela saberia o que esperar emocionalmente neste momento, mas sua experiência subjetiva acrescentaria algo a todo aquele conhecimento acumulado durante seus estudos?
Você pode estar pensando agora: "Mas que pergunta idiota, é claro que a resposta é sim!" - e eu não discordo de você, a experiência humana é muito mais rica do que aquilo que podemos representar pelos meios disponíveis nas ciências naturais ou da linguagem formal. Mas existem alguns acadêmicos que acreditam não ser este o caso. Tais pessoas se fundamentam naquilo que julgo ser uma visão limitada do mundo e se utilizam das limitações da linguagem e do próprio conhecimento científico para defender esta visão (anfibologia proposital aqui).
Mês passado li um artigo na revista FILOSOFIA Ciência e Vida, ano II, nº 17 , intitulado MARY E O TOMATE ou os qualia são relevantes para o conhecimento do mundo? escrito por João de Fernandes Teixeira, PhD. Nele, o autor descreve sua versão do experimento mental, mais atual e, creio eu, mais bem formulada do que a original, ainda que mais econômica em palavras; e prossegue utilizando-se das palavras do próprio Jackson para descrever que a visão do fisicalista, que "[...] implica na tese de que toda informação é informação a respeito do mundo físico, ou seja, se sabemos a totalidade de fatos físicos, sabemos a totalidade de fatos que há no mundo."
Mas seu objetivo é justamente o oposto daquele de Frank Jackson. Para o autor, a experiência em primeira mão não irá acrescentar nada de relevante para quem já detêm o conhecimento teórico, classificando o experimento mental de Jackson como um argumento do conhecimento.
Eis o primeiro argumento que Teixeira usa, parafraseando Dennett (Daniel, filósofo americano), para chegar a esta conclusão: "É possível, por exemplo, refutar a história de Mary argumentando que ela não aumenta seu repertório de conhecimentos após acordar da neurocirurgia. Pois afinal de contas, não é uma das premissas do experimento que ela sabia tudo a respeito do cérebro humano e de como ele processa as cores?" Bom, de fato, a Maria (ou Mary) do experimento mental sabe tudo a respeito do cérebro humano e de como ele processa as cores, mas isso é diferente de saber tudo o que há para saber sobre as cores e o que as mesmas provocam no ser humano. Logicamente não basta dizer que as cores são capazes de provocar emoções, uma vez que poderia ser levantada a possibilidade de que, uma vez que emoções são estados físicos do sistema nervoso central, Maria poderia saber tudo sobre como elas se processam (é um experimento mental, tal argumento é válido). Com isso, voltaríamos a pergunta original, suscetível à mesma refutação já descrita, mas tornamos um pouco mais claro o meu objetivo ao usar as palavras experiência de primeira mão, ou invés das palavras experiência subjetiva.
Para sustentar o argumento anterior, Teixeira cita um outro experimento mental, proposto por Dennett, que possui o mesmo desenvolvimento do experimento mental original proposto por Jackson, mas termina com Maria sendo apresentada a uma banana azul, propondo as seguintes perguntas: "Será que ela passaria a acreditar que as bananas são azuis? Ou passaria ela acreditar que o que é azul deve ser chamado de amarelo?"Ao que dá o seguinte desfecho: "Certamente não. Segundo Dennett, o mais provável seria que ela exclamasse: 'Vocês estão tentando me enganar, as bananas são amarelas e essa é azul.'"
Respondo a esse argumento, sem questionar o argumento em si mas a sua finalidade, propondo a seguinte pergunta: qual seria o primeiro impulso de Maria ao constatar o engodo? Talvez sejamos levados a imaginar ela inicialmente perplexa e, logo em seguida, achando graça da "brincadeira"; mas devemos admitir que ela poderia ter ficado ofendida e sentido ira, especialmente sendo ela detentora de títulos que lhe concedem algum status, por ser submetida àquilo que ela poderia encarar como um teste de seus conhecimentos.
É inútil argumentar se esta seria uma reação exagerada e inadequada da parte dela, pois os seres humanos não se portam de maneira ideal em todas as situações, é um aspecto de algo chamado personalidade e que não pode ser descrito em termos físicos.
Também não acredito que utilizando-me do espectro de reações emocionais possíveis de Maria ao experimento proposto por Dennett, eu não esteja fugindo do foco deste tópico, uma vez que compreendo que qualia abrange o todo daquilo que a experiência humana é capaz de produzir em resposta a cada estímulos físico possível que seja percebido.
Teixeira continua, afirmando que o experimento mental proposto por Jackson está mal montado pois a neurociência e a Física são "disciplinas que mudam no decorrer do tempo e que no futuro podem vir a ter conceitos que nem sequer podemos imaginar no presente." Este argumento foi o que me levou a explicar brevemente a origem e o conceito de experimentos mentais no início deste post. O quê pensaria o Sr. Teixeira de um experimento mental como o Homem do Pântano?
Muito interessante, também, é esta afirmação seguida de um questionamento: "Mas há ainda outras formas de objetar o experimento mental de Mary. Podemos insistir na tese de que ela não adquire novo conhecimento ao ter a experiência de um tomate vermelho. Nesse caso, podemos perguntar se a cor vermelha corresponde realmente a algo que está no mundo ou não seria apenas alguma coisa que ocorre estritamente no âmbito da experiência subjetiva de Mary, por assim dizer, na cabeça dela - e das outras pessoas. E se for dessa maneira, nesse caso, seria esse conhecimento de quê? Será algo real?"
Caro Sr. Teixeira, ao levantar tais questionamentos o senhor não está objetando à finalidade do experimento original, mas concordando com as conclusões do mesmo. Se não fosse a nossa subjetiva percepção da realidade, jamais questionaríamos a mesma.
"Um robô pode não enxergar a vermelhidão dos tomates, mas, mesmo assim, obter as informações necessárias para agir sobre eles de forma adequada." - Sim, sem dúvida. Um robô é construído para agir de forma adequada. Os seres humanos agem de forma adequada, em boa parte do tempo. Nem sempre. Não é surpreendente me deparar com um resgate de argumentos mecanicistas (deveríamos atualizar para digitalista?) na época em que vivemos, especialmente quando o assunto envolve filosofia da mente; mas simplificar a afirmação anterior, no contexto em que está inserida, simplifica demais as perguntas de grande importância nas quais a filosofia da mente possui participação imprescindível na busca de respostas, como a viabilidade de uma inteligência artificial forte e a natureza que teria a consciência tal entidade.
Ainda quanto a conclusão do Sr. Teixeira, de que os qualia, ou experiência subjetiva ou de primeira mão, não acrescenta nada ao conhecimento humano, penso que são bons argumentos para refutar tal conclusão, o valor da ciência experimental e do conhecimento a posteriori, que é exclusivamente produzido pela mesma; o valor, na Academia, dos estágios práticos; e o conhecimento produzido na práxis que se dá com o maturamento profissional do indivíduo.
Muitos dos debates que se deram a cerca deste experimento foram propelidos pelos contextos utilizados nos argumentos da sua formulação original, dirigidos para contestar um pensamento que, uma vez formulado na interdisciplinariedade, faz com que conceitos mentalistas a priori interajam com conceitos a posteriori das ciências naturais. Fosse esta uma discussão meramente filosófica e estética, e tendo sido utilizados outros argumentos, seriam bem mais escassas as objeções.
Quero, ainda, adentrar um pouco mais no âmbito fisicista, trazendo para este post algo que é de conhecimento comum, que são as diferentes formas em que se manifestam os sentidos entre as espécies e na generalidade da espécie humana em si. Existem flagrantes variações que podem ser quantificadas experimentalmente e, até mesmo, qualificadas nos sentidos que possuímos para perceber a realidade. Tais variações estão ligadas a genética do indivíduo e, enquanto são mais evidentes em suas graduações quantitativas, têm seu aspecto qualitativo manifestado, mais comumente, no sentidos do paladar e do olfato e, em casos mais raros, nos sinestetas.
Uma questão que muitas vezes se perde nas discussões acadêmicas mas que está na raiz do experimento da Maria, é como nós vemos as cores. Crianças com daltonismo enxergam o mundo de maneira diferente, e até serem diagnosticadas podem sofrer embaraços na escola, em jogos que dependam de cores ou no estudo de mapas, e tais embaraços podem ser determinantes da formação da personalidade destas crianças. Estes são fatos completamente calcados no fisicismo, com relevância prática, e que confirmam de maneira facilmente compreensível o experimento proposto por Jackson.
Como diria Wittgenstein, não podemos compreender o que um leão fala, pois não vemos o mundo da mesma maneira que um leão vê. E isto não é verdadeiro apenas em uma abordagem lingüística ou filosófica, pois a mesma está atrelada às diferenças físicas entre as espécies. Nossa visão de mundo e a maneira como interagimos com o mesmo é construída tendo como base, além de nossas experiências, a maneira como podemos perceber e a compreensão que somos levados a ter sobre estas experiências.
Frank Jackson, que foi aluno de Wittgenstein, veio a capitular e crer que argumentos do conhecimento contra o fisicalismo, como o experimento de Maria e o argumento do Zumbi Filosófico podem levar a conclusões erradas. Não discordo dele nesta afirmação, uma vez que argumentos mentalistas contra o fisicalismo estarão indo contra o conhecimento que determina nossa capacidade de perceber, de raciocinar, de criar e fazer uso de experimentos mentais, e até de nossas diferenças nestas habilidades. Da mesma maneira, o fisicalismo irá percorrer um caminho tortuoso e chegar a conclusões duvidosas questionando o mentalismo, pois estará questionando sua própria razão de existir, a consciência humana.
Prova disso pode ser encontrada num exercício de comparação classificativa entre a inteligência humana e a inteligência atual de um computador, no tocante a perceber problemas em seu meio e resolvê-los. Tal medição, ainda que consideravelmente extrapolativa, pode ser obtida por meio de um computador normal e um programa de solução não assistida de problemas como o Soar ou com autômatos como os da RoboCup. Suas inteligências ficam, comparativamente, no nível de um molúsculo gastrópode, em relação à inteligência humana.
Por que, então, um computador como o DeepBlue, capaz de vencer um campeão mundial de xadrez, não se torna consciente? Nós, seres humanos, com nossos cérebros que não evoluíram nada ou não evoluíram muito nos últimos 200.000 anos, somos capazes de realizar milhões de cálculos simultâneos, alguns em nível inconsciente, como noções de posicionamento e força provida pelo cerebelo, mas não somos capazes de calcular matematicamente tão rápido quanto um computador. Imagina-se, hoje, que os computadores estão nos alcançando em capacidade de processamento bruto, mas ainda estão longe quando o assunto é consciência. O que falta? Seria os meios de interagir com o mundo? Não é tão difícil equipar um computador com sentidos que mimetizem, e em alguns casos e situações superem, os sentidos humanos. Ainda assim, mesmo equipado com todos os sentidos que temos a disposição, um computador não se tornaria imediatamente consciente.
Estaria aí o valor dos qualia? Enquanto sim, os qualia tem algo haver com essa questão, a resposta a que chego é: não exatamente. O ser humano cria a máquina, e na máquina o ser humano reproduz, ainda que grosseiramente, ao próprio ser humano e a natureza por ele conhecida. Até mesmo na sua variação genética. Tão variadas quanto são os humanos, são suas criações. Se nelas imprimimos nossas variações físicas enquanto espécie, é nas artes, na estética, que imprimimos nossos qualia.
Assim como nossas variações físicas possuem um importante papel no modo como iremos interagir e compreender o mundo, no momento em que imprimirmos arte em nossas criações físicas, estas também poderão adquirir características subjetivas de nossa experiência, de maneiras que no presente ainda é difícil conceber, se não de modo pitoresco como se dá na ficção científica popular.
Já chegou o momento de perceber que mentalismo e fisicalismo andam juntos e são interdependentes, pois novas questões esperam respostas e dependem da clareza de que ambos são parte daquilo que somos, para que então possamos progredir.
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