sexta-feira, 7 de março de 2008

Ética e isolamento

De um trabalho para o componente curricular de Ética Profissional em Psicologia.

Reflita sobre essa situação:

Isolado numa ilha deserta, sem qualquer contato com a civilização, Alfredo viveu, durante anos, do que a natureza lhe proporcionou como meio de subsistência, até ser resgatado pela tripulação de uma embarcação de pesquisa oceanográfica.

Agora responda:

Durante o tempo que passou por essa experiência, seria possível a Alfredo vivenciar o que consideramos a dimensão ética dos homens? Teria ele tido condições de manifestar valores, comportamentos que possam ser considerados éticos?

Justifique sua opinião.

Como é a primeira vez que estou estudando o conceito de ética academicamente, acho necessário, antes de mais nada, ter uma noção tão exata quanto possível sobre o que significa este conceito.

A versão eletrônica do Dicionário Aurélio – Século XXI, na sua versão 3.0, dá a seguinte definição:

ética

[Do lat. ethica gr. ethiké.]

S. f. Filos.

1. Estudo dos juízos de apreciação referentes à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto.


[Cf. bem (1) e moral (1).]


Esta definição já é capaz de fornecer algumas pistas para a resposta à pergunta do presente trabalho, mas acredito na necessidade de recorrer a mais fontes, para poder construir minha própria visão sobre o tema. Desta maneira, vou recorri à Internet Encyclopedia of Philosophy da University of Tennessee (UTM)1:


O campo da ética, também conhecido como filosofia da moral, envolve a sistematização, defesa e recomendação de conceitos do que são comportamentos certos e errados. Filósofos modernos costumam dividir as teorias éticas em três áreas gerais: metaética [ou ética analítica], ética normativa e ética aplicada. A metaética investiga de onde vêm nossos princípios éticos e o que eles significam. Seriam eles meras invenções sociais? Envolveriam mais do que expressões de nossas emoções individuais? As respostas metaéticas para estas perguntas focam-se na questão de verdades universais, a vontade de Deus, o papel da razão em julgamentos éticos e o significado dos próprios termos éticos.

A ética normativa assume um papel mais prático, o de chegar a padrões morais que regulem a conduta correta e a conduta errada, podendo envolver a articulação de bons hábitos que devemos adquirir, deveres que devemos seguir ou conseqüências dos nossos comportamentos para os outros. Finalmente, a ética aplicada envolve o exame de assuntos controversos específicos, tais como aborto, assassinato, direitos dos animais, preocupações ambientais, homossexualidade, pena de morte ou guerra nuclear. Por meio do uso de ferramentas conceituais da metaética e da ética normativa, as discussões de ética aplicada tentam resolver estas questões controversas.


Assim sendo, é correto afirmar que ética é um amplo campo de estudo metafísico, por se tratar de um corpo de conhecimentos a priori, que encontra seu papel em nossas vidas com base nas conseqüências das ações humanas. qualificando-as como boas e ruins. As respostas obtidas pelo estudo da ética são dedutivas mas nem por isso deixam de respeitar um conjunto de regras de pensamento lógico que vêm evoluindo com os sistemas filosóficos e as sociedades humanas. Para que uma resposta possa ser classificada como ética, é necessário que ela siga os preceitos destas regras, sob a pena de tornar-se falaciosa caso ignore tais preceitos, podendo estar certa, mas pelos motivos errados, ou simplesmente errada por algum viés de raciocínio.

Agora voltando a questão levantada pelo exercício, inicialmente sou levado a entender a pergunta como “se o Alfredo é capaz de agir com ou sem ética estando isolado do resto da humanidade.” Se assim fosse, minha resposta seria de que sim, uma vez que ética é o julgamento do resultado de nossas ações, não necessariamente para com os demais indivíduos humanos. Acredito que isso possa ficar claro perguntando a um biólogo se ele acha correto, ou ético, o teste de armamento nuclear em atóis do Oceano Pacífico. O impacto ambiental resultante das ações do grupo de seres humanos responsáveis por tais testes é, longe de qualquer dúvida, errado por ser danoso em larga escala aos ecossistemas de todos os níveis daquelas regiões e regiões vizinhas. Enquanto não podemos classificar as ações de animais não-humanos como sendo éticas ou anti-éticas por que estes não são dotados de um neocórtex que lhes permita avaliar suas ações além de suas necessidades de sobrevivência e fins biológicos2, podemos sim avaliar as ações dos animais humanos que causem efeito num determinado ecossistema.

Se Alfredo encontrava-se em uma ilha que lhe permitisse um número mínimo de opções alimentícias e, dadas estas opções, ele escolhesse em um determinado momento alimentar-se de larvas das árvores e insetos ricos em proteínas ao invés de usar ovos de gallicolumba erythroptera (pássaro da polinésia na lista dos mais ameaçados de extinção), ele estaria sendo ecologicamente correto e, na definição do biólogo Bruce Walsh, ele estaria sendo ético: os três motivos científicos para o interesse humano na preservação da biodiversidade, que são “os recursos genéticos, estabilidade dos ecossistemas e motivos éticos.”3

Contudo, a pergunta não era se Alfredo era capaz de agir com ou sem ética estando isolado da humanidade, mas se ele era capaz de “vivenciar o que consideramos a dimensão ética do homem.” Num âmbito mais pessoal, considerando que ética é a qualificação dos resultados das ações pessoais de alguém em relação aos demais, podemos argumentar que por ter escolhido sobreviver isolado em uma ilha ao invés de sucumbir às dificuldades, Alfredo estaria sendo ético em sua condição humana. A comprovação filosófica para tal argumento pode ser demonstrada por um silogismo simples:


  1. Todos os homens fazem parte da humanidade;

  2. Alfredo é um homem;

  3. Alfredo faz parte da humanidade.


Sendo Alfredo parte integrante da humanidade, a decisão pessoal de preservar e lutar por sua vida afeta positivamente o conjunto “humanidade” considerando-se a vida humana como um valor, pressuposto necessário para a validação deste argumento.

Como estudante de Psicologia, tendo entre os principais objetos de estudo a subjetividade que é única a cada indivíduo, resultado de seus complexos e magníficos processos mentais de aquisição, retenção e organização de experiências, sua visão de mundo, é natural que tenha a vida humana, toda vida humana, como algo de grande valor.

Por isso sustento minha afirmação inicial, mesmo tendo elaborando melhor o questionamento, de que é possível, ainda que estando isolado fisicamente do resto da humanidade em uma ilha, agir de modo ético considerando todos os parâmetros de uma correta asserção de conceito.

Como resultado de ter sobrevivido, Alfredo poderia voltar à sociedade e escrever um livro, ou dar palestras motivacionais contando sua experiência, ou poderia simplesmente casar-se, ter filhos e ser um bom pai e marido. É vasta a gama das possibilidades da vida em sociedade, sendo que todas elas seriam invalidadas se Alfredo morresse na ilha. Em cada ação sua visando sua sobrevivência, Alfredo foi ético.




1ETHICS [Internet Enclyclopedia of Philosophy] James Fieser, Ph.D., fundador e editor geral, Bradley Dowden, Ph.D., editor geral - http://www.iep.utm.edu/e/ethics.htm – Acesso em 07 de março de 2008.

2É interessante notar que o Prof. José Roberto Goldim, da UFRGS, discorda deste ponto de vista, afirmando que a noção de que a ética está circunscrita apenas aos seres humanos é ultrapassada e que nossos “parentes próximos” são capazes de demonstrar um comportamento ético. GOLDIN, J. R. [Ética] UFRGS. http://www.ufrgs.br/bioetica/etica.htm - Acesso em 07 de março de 2008.

3WALSH, Bruce. [Extinction]. Bioscience at University of Arizona. http://nitro.biosci.arizona.edu/courses/
EEB105/lectures/extinction/extinction.html - acesso em 26 de julho de 2006 apud EXTINTION. Wikipedia, the free encyclopedia, http://en.wikipedia.org/wiki/Extinction - Acesso em 07 de março de 2008.



Adendo:

Fiquei intrigado com a expressão "dimensão ética" e seu significado. Estava pensando sobre isso enquanto lia o texto Sobre a dimensão ética na formação do educador, de Marlene Santosi, que cita até uma dimensão afetiva. As coisas tornaram-se mais claras e me dei conta de uma solução lingüística simples para o enunciado da pergunta do trabalho.
Se considerarmos:
Seria possível a Alfredo vivenciar o que consideramos a dimensão ética dos [outros] homens?
A resposta é não... Pelo menos até seu resgate.

Agora, se considerarmos:
Seria possível a Alfredo vivenciar o que consideramos a dimensão ética dos homens? - dando amplo sentido a palavra homens enquanto humanidade, aí entra a questão do silogismo proposto na minha resposta.

Logo, depende do significado que se dá a palavra "homens."
Quanto a dimensão ética, só posso imaginar que se trate dos aspectos gerais comuns que a ética assume para a humanidade como um todo, sua atual concepção.

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