quinta-feira, 20 de março de 2008

V. S. Ramachandran fala sobre Consciência, Qualia e Self.

Tradução de uma entrevista em que Vilayanur S. Ramachandran fala sobre consciência, qualia e self, relacionando aos aspectos neurofisiológicos da mente humana. Ramachandran é um neurologista que trabalha com neurologia comportamental e psicofísica, e é reconhecido mundialmente por suas pesquisas sobre membros fantasmas em pessoas que sofreram amputações, sobre alterações nas percepções conscientes em pessoas que sofreram derrames ou outras danos cerebrais, sobre sinestetas, entre outras. O vídeo da entrevista pode ser visto no YouTube, seguindo este link:
http://www.youtube.com/watch?v=jTWmTJALe1w
Por se tratar de uma entrevista muito curta, de apenas 8 minutos, e com uma enorme densidade de informações, incluí alguns comentários entre chaves para tornar alguns pontos mais claros. Também incluí, no corpo do texto, links para explicações sobre alguns dos conceitos abordados.

V. S. Ramachandran: A idéia geral é que existem vários conceitos sobre o que é consciência, certo? Para um anesteologista ou para um neurologista, lidando com o coma por exemplo, existe uma escala... Mas eu penso que isto são apenas as fontes de energia que saem dos centros cerebrais, são diferentes níveis de excitação e de estar consciente ou inconsciente...
Olhar para estes sistemas não vai levá-lo a lugar nenhum se você quiser entender o que é consciência. Entender qual é a lógica da consciência, que é o que nós queremos entender. É como dizer que você precisa entender a genética dos círculos de plantações... É óbvio que você precisa [falando ironicamente], mas esta não é a "chave" para entender a genética, como a estrutura de dupla hélice da molécula de DNA... Bom, esqueça isso, ok?
Agora, quais são as outras questões quando lidamos com consciência? Há duas questões importantes e relacionadas: uma é o que nós chamamos de qualia. Christof Kock e Francis Crick adotaram esta abordagem e filósofos referem-se ao qualia como sendo "sensações das quais você possui consciência." Por exemplo, se eu espetar você com uma agulha, não é como se você apenas dissesse: "Ai!" - Existe também uma experiência subjetiva interna de consciência, de estar consciente da dor.
Se eu espetar alguma outra pessoa com uma agulha, eu posso descrever todos os caminhos, tudo que é ativado, a cascata de agentes químicos, a atividade neural até chegar à área de Broca, até esta pessoa dizer: "Ai!" - Certo? Mas eu não experienciei nada disso e não há razão alguma para postular que esta pessoa está experienciando, internamente, um fenômeno mental chamado qualia. Skinner iria concordar com isto.

Entrevistador: Você não ia, ahm.. Falar sobre Maria, a neuro...

V. S. Ramachandran: Sim, estou chegando lá, estou chegando lá...

Entrevistador: Certo... [suspiro]

V. S. Ramachandran: Então, quando eu espeto você com uma agulha - e esta é uma questão muito importante... Quando eu espetar a mim mesmo com uma agulha, se eu me olhar através de um autocerebroscópio - daqui a uns 5.000 anos - e se eu desenhar todo um diagrama de todas estas coisas acontecendo [internamente no meu cérebro]... Mas! Meu Deus! Algo ficou faltando! Este algo seria justamente a experiência subjetiva interna.
Ou se você é um marciano, olhando para o meu cérebro e, digamos, você não possui nenhum qualia... Ou melhor, esqueça os marcianos! Vamos supor que você é o Roger Penrose e você nasceu com daltonismo, de maneira que você não possui nenhum qualia para cor, mas você é inteligente e você aprendeu física; e que você conhece diferentes ondas, você sabe que todas as criaturas como eu, como o "Rama", possuem pigmentos nos olhos e possuem neurônios especializados em cor disparando; e você me mostra este diagrama e diz: "Olhe, Rama, eu sei tudo sobre enxergar em cores, são todos estes caminhos disparando em conjunto." Mas eu te diria: "Sim, Roger, mas você está deixando passar algo!" E este algo é a experiência subjetiva crucial do verde, quando os neurônios do verde disparam, que é diferente da experiência subjetiva do vermelho, quando os neurônios do vermelho disparam; o que é inefável, eu não posso comunicar tal experiência, esta sensação, para você. Então este é o problema do qualia.
O outro problema, que muitas pessoas pensam se tratar de um problema a parte - mas que eu discordo - é o problema do self. A pessoa que experiencia o qualia... Eu posso refletir sobre o meu qualia. Eu posso dizer: "Não apenas eu experiencio o qualia, mas eu sei que eu experiencio o qualia, e eu sei que sou eu experienciando o qualia." Ou seja, é a experiência subjetiva de sentir a mim mesmo experienciando o qualia. Existe uma qualidade solipsista peculiar neste sentido.
Crick e Koch decidiram que devemos primeiro resolver o problema do qualia, para depois nós chegamos ao problema do self. Mas eu digo que isto é impossível. Com todo o respeito ao Crick e ao Koch, que fizeram enormes contribuições e deixaram a todos excitados sobre o assunto, mas o que estou dizendo é que não existe um estágio inicial chamado qualia e um estágio posterior do self inspecionando o qualia... Não existe tal coisa.
O motivo é muito simples... Não existe tal coisa como qualia livre flutuando por aí... Isto seria um oxímoro: um qualia sem um self para experienciá-lo. Da mesma maneira, um self sem qualia - sem nenhuma sensação, sem memórias, sensações subjetivas - é despropositado, não faz sentido. Então eu afirmo que estes dois conceitos evoluíram juntos e estão intimamente ligados à linguagem, na área de Wernicke.
Me deixe ser mais específico... Para o qualia fazer sentido é preciso haver significado. Por exemplo, uma mosca da fruta expõe sua probosis, olhando para uma maçã vermelha... Vamos comparar com a visão colorida do ser humano... Então, quando um ser humano está olhando para uma maçã vermelha, é quase que um reflexo... É óbvio que ele está criando uma representação da maçã, ele precisa fazer isto por que seus sinais neurais não estão "copiando" [no sentido literal, não estão reproduzindo fisicamente] a maçã. Mas então, depois da representação, vem o tom - ou a probosis sentindo a maça... Ok? E depois ela consome parte da maçã... Esta é uma característica da mosca, elas testam pelo cheiro... Mas vamos voltar ao exemplo humano, pelo bem do argumento; o impulso visual se fixa, como a mosca expõe sua probosis, e eu digo que não existe qualia, não existe tal coisa como uma awareness crua da sensação de vermelhidão da maça. Para você [um ser humano], por outro lado, uma maçã evoca a tentação de comer, o desejo por uma torta de maçã, manter o médico afastado [maçã como objeto de boa saúde]... Ela possui centenas, milhares, virtualmente infinitos significados... Ou, se você for Newton [Isaac], ver uma maçã caindo faz com que você pense na gravidade, a força que mantém todo o sistema solar no lugar.
[O que ele quer dizer, aqui, é que não existe qualia se não houver uma representação mental subjetiva em resposta à sensação de ver a vermelhidão de uma maça, uma representação mental que se forma com base no conhecimento consciente e subjetivo que adquirimos sobre o que é uma maçã e que está relacionado à linguagem; uma mosca não pode possuir qualia pois não é capaz de criar uma representação mental subjetiva sobre o que é uma maça, ela não dá significado subjetivo à maça pois não evoluiu ao ponto de possuir uma linguagem como os seres humanos.]
Então as implicações são potencialmente infinitas... E isso é único do ser humano, e ocorre - penso eu - em certos circuitos do cérebro.
Outra coisa que discordo é da existência neurônios do qualia, não acredito que tal coisa exista. Crick diz isso em tom de brincadeira, apenas para ser provocativo, mas algumas pessoas levaram isso a sério. Eu não penso que exista tal coisa. Eu penso que quando você está fazendo um reducionismo, existe um nível apropriado de reducionismo e um nível inapropriado de reducionismo. Por exemplo, Crick fala das bases reducionistas da genética na hereditariedade, e acontece de ser, por sorte, que o nível correto é a molécula de DNA - a estrutura de dupla hélice - e o código genético. Se ele estivesse estudando mecânica quântica e tentasse descobrir [ou abordar] o código genético no nível [de reducionismo] da mecânica quântica, ele teria falhado...
[Outra forma mais simples de colocar as coisas: se você tentar dar pontos no braço de alguém usando um microscópio para enxergar o que está fazendo, provavelmente você irá ter um péssimo resultado.]
Similarmente, você não vai entender o que é consciência e qualia ao nível de neurônios isolados, você vai precisar estudar ao nível de circuitos do cérebro. Contudo, eu não penso que a consciência ocupe o todo o cérebro - e isto é importante - [a consciência] não é a atividade total do cérebro. São estruturas específicas, bem delimitadas no cérebro, ou uma destas estruturas. Esta compreensão permite que você aborde o problema [do self e do qualia]. E eu penso que você precisa entender o problema do self e o problema do qualia como os dois lados da banda de Moebius: diferente de uma moeda, você não pode entender um [lado], sem entender o outro; e é aí que as pessoas se perdem, pois pensam que o self é outro problema complicado, então decidem resolver primeiro a questão do qualia para eventualmente chegar ao problema do self. É preciso resolvê-los simultaneamente, é preciso mapear a lógica funcional da consciência - self - qualia - significado... Certo? Como os neurônios produzem significado. Este é o novo "Santo Graal" da neurociência.
E não penso que você irá ver animais mais primitivos, mesmo macacos, fazerem isto no mesmo nível que os humanos, talvez você encontre alguns sinal rudimentar disso nos grandes macacos. Mas é necessário o surgimento do giro supramarginal, que se torna o giro angular e uma outra estrutura no cérebro humano... Bom, deixe isso para lá... O lobo parietal inferior, que se divide no giro angular e no giro supramarginal, em seres humanos... Certo? Isto é único dos seres humanos. E um enorme giro angular, que também é único dos seres humanos.
A área de Wernicke, que é única dos seres humanos, e algumas outras estruturas, agindo em conjunto para gerar o seu sentido de self, ok? Especialmente o hemisfério direito e sua autoimagem corporal, o senso de self ancorado no seu corpo, o senso de planejar para o futuro... Envolvendo parte do cingulado anterior [CCA - córtex cingulado anterior] e do lobo frontal, e o self sendo capaz de inspecionar as informações sensoriais que estão chegando... E isto é perigoso, teoricamente, pois quando falamos em inspecionar pode fazer você pensar na falácia do homúnculo, de que há um pequeno homenzinho observando, e não é isto o que estou querendo dizer. O que estou querendo dizer é que, em algum momento de nossa evolução, ao invés de apenas criar uma representação das sensações, nós começamos a criar aquilo que eu chamo de uma metarepresentação: uma representação da representação; diferente da mosca da fruta, o que nos permite manipular símbolos internamente, em nossas cabeças, e que está intimamente ligado a coisas como o significado. Isto se dá no lobo parietal inferior em conjunto com a área de Wernicke, que até certo ponto está relacionado ao senso de antecipação, que está lá no cingulado anterior. Com todas estas estruturas agindo em conjunto surge, então, esta propriedade dupla de qualia e self, que eu acredito ser única dos seres humanos.

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Obs. (feita muuuuito tempo depois desta tradução): Qualia é o plural de quale. Logo são os qualia e o quale. Mas na época que fiz esta tradução eu não sabia disso, pois só havia lido textos em inglês... The qualia, the quale, etc. E qualia é mais amplamente usado que quale.

Para saber mais:

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