terça-feira, 25 de março de 2008

Visão: construindo representações da realidade

Nossos olhos são órgãos especializados em captar radiação eletromagnética, também conhecida como luz, e transformá-la em informação sensorial que nos permite construir uma representação do mundo que nos cerca, seus obstáculos e objetos de interesse. A radiação eletromagnética carrega consigo energia e momentum (quantidade de movimento linear), que podem interagir com a matéria, e é classificada em tipos de acordo com a freqüência de onda, sendo que suas formas conhecidas são: ondas de rádio, microondas, radiação tera-hertz, radiação infravermelha, luz visível, radiação ultravioleta, raios-x e raios gama. Dentre estas, nos interessa a radiação eletromagnética na forma de luz visível, que possui uma freqüência de onda que compreende a faixa de 400 à 790 THz (tera-hertz), ou comprimento de onda de 380 à 750 nm (nanômetros).
Ilustração baseada nas figuras EM Spectrum.svg (http://en.wikipedia.org/wiki/Image:EM_spectrum.svg) e Srgbspectrum.png (http://en.wikipedia.org/wiki/Image:Srgbspectrum.png).

As cores que percebemos são resultado do comprimento de onda que é emitido ou que é, mais comumente, refletido por um determinado objeto, por exemplo: um tomate maduro não emite luz vermelha, mas absorve todas as freqüências de luz visível e reflete apenas o grupo de freqüências que percebemos como sendo a cor vermelha (625-740 nm aprox.); e a intensidade da cor é resultado da freqüência de onda. Desta maneira, é importante notar que aquilo que vemos é apenas a luz emitida por um determinado objeto, como os animais bioluminescentes, ou a luz refletida por um objeto, ou seja, nós não enxergamos os objetos propriamente ditos e, se não houver uma fonte de luz, nada enxergamos.
A transformação da radiação eletromagnética em informação visual é realizada por um conjunto de componentes que formam o sistema visual humano, que tem início nos olhos. Primeiro a luz visível, que na Psicologia é chamada de input ou estímulo luminoso, sofre uma refração ao passar pela córnea, a película protetora do olho, depois tem sua intensidade e foco regulados pela íris e pelo cristalino respectivamente, sendo que do cristalino a imagem resultante é projetada em uma membrana fotossensível que recobre a camada interna do olho.
É interessante notar que, com todo o avanço na área dos polímeros, o ser humano ainda não foi capaz de criar uma lente tão avançada e versátil quanto o cristalino, capaz de contração e distensão sem perder a translucidez – propriedades que são essenciais para a acomodação visual. As células que compõe o cristalino são únicas, por perderem suas organelas durante sua formação, propriedade que, juntamente à alta concentração de proteínas especiais (α-crystallin e βγ-crystallins), permitem que esta estrutura orgânica, organizada em múltiplas camadas, possua um alto nível de refração, sem pares nas criações humanas.
Na retina, uma membrana com cerca de 100 milhões de células fotossensíveis distribuídas de forma desigual, a imagem é projetada de cabeça para baixo e dilatada, sendo que esta imagem é interpretada com menor resolução nas bordas e com um pequeno espaço em branco. Isso é causado pelo efeito da lente, como demonstrado pelo astrônomo Johannes Kepler, pelo formato interno do olho, que é côncavo, pela diminuição gradual de células fotossensíveis nas extremidades da retina, e pelo ponto cego que, paradoxalmente, localiza-se justo onde fica o nervo óptico – uma zona desprovida de células fotossensíveis.
A retina é formada por dois tipos de células de tecido nervoso, especializadas na captação de luz visível: os cones e os bastonetes. Os cones são responsáveis pela detecção de cores (comprimento de onda) e os bastonetes são responsáveis pelo grau de luminosidade (freqüência de onda).
As diferenças de função e quantidade entre bastonetes e cones explicam o motivo pelo qual temos uma menor percepção de cores à noite e em dias nublados, sendo que neste último caso também sofremos com o filtro da luz solar pelas nuvens, que altera consideravelmente o contraste das cores dos objetos. O trabalho conjunto dos bastonetes e dos cones é essencial para a acuidade visual, na definição dos limites dos objetos, sendo este um dos motivos pelos quais a visão periférica possui menor definição e, com isto, está sujeita a um maior número de fenômenos visuais e perceptuais.
Ilustração de Santiago Ramón y Cajal, de 1910, descrevendo a organização dos bastonetes e dos cones: nove bastonetes para um cone (http://en.wikipedia.org/wiki/Image:Fig_retine.png).

Próxima ao centro do eixo da retina, encontra-se a mácula, ou fóvea (ambas as palavras significam mancha), que é uma região rica em células fotossensíveis e que proporciona a maior acuidade visual. Ao seu lado encontra-se o disco óptico, ou o ponto cego da visão - um escotoma, local onde o nervo óptico se conecta com o olho, levando consigo entre um milhão e um milhão e duzentos mil feixes de neurônios do olho ao cérebro. É interessante notar que até 1660 acreditava-se que o disco óptico seria o local de maior acuidade visual, quando o francês Edme Mariotte finalmente identificou e descreveu o fenômeno do ponto cego (punctum caecum).
Até aqui vimos que aquilo que enxergamos é, na verdade, a radiação visível que é refletida, absorvida ou emitida pelos objetos, e não os objetos em si, e que esta radiação é captada por um órgão que a inverte de cabeça para baixo, a distorce, borra suas bordas e lhe impõe um “furo”. E ainda nem terminamos de falar sobre como as imagens do exterior são captadas e transmitidas ao cérebro.
Ainda a nível dos olhos, considerando que temos um par de olhos, aquilo que enxergamos são duas imagens de ângulos ligeiramente diferentes entre um olho e o outro. É possível notar o quanto isso é relevante forçando o fenômeno de rivalidade binocular ao cruzar os olhos, criando duas imagens bastante diferentes entre si que tendem a criar, inicialmente, uma ilusão de sobreposição mas que acabam, na verdade produzindo duas imagens diferentes que se alternam. Isso também pode ser averiguado usando uma caixa com uma divisória com duas imagens de padrões diferentes ao fundo, e posicionando o rosto na divisória da caixa de maneira que cada olho enxergue uma imagem diferente. Este fenômeno foi descrito pela primeira vez pelo italiano Giambattista della Porta, em 1589, e tem sido abordado recentemente para demonstrar como os sistemas neurais - e suas ilusões - relacionam-se com o fenômeno da consciência: diversos conjuntos de sistemas neurais, ou análogos à circuitos, são responsáveis por nos dar consciência de diferentes aspectos da realidade, em diferentes níveis; sendo que o conjunto destes sistemas forma o todo da consciência.
Com isso, nosso cérebro recebe duas imagens diferentes, alternadas, e as processa para que possamos ter a noção de perspectiva, que embora nos pareça muito natural nos dias de hoje, pode ser confirmada como um fenômeno não tão consciente assim para os seres humanos por inferência daquilo que se pode depreender de desenhos feitos por crianças em idade escolar, que em geral são desprovidos de perspectiva, e pelo fato da humanidade, em suas obras artísticas, ter demonstrado períodos de absência perspectiva, como em muitos quadros da idade média, por exemplo.
Nem todas as crianças ignoram a perspectiva em seus desenhos, assim como a perspectiva não se perdeu completamente durante a idade média ou as obras arquitetônicas daquele período seriam inviáveis. Será que nascemos com a noção de perspectiva embotada em nossas meta-representações? Por que algumas pessoas mantém essa noção ao longo da vida? Vamos abordar algumas das hipóteses atuais para esse problema mais adiante.
Antes de tratar de como a informação visual é transportada para o cérebro, ainda é preciso falar, mesmo que brevemente, sobre um fenômeno bastante explorado na infância e que torna-se menos evidente em adultos, o fenômeno entóptico do campo azul. Ele ocorre quando olhamos para o céu azul, em um dia claro, e notamos pequenos artefatos movendo-se em nosso campo de visão. Durante anos especulei sobre o que ele poderia ser: algum efeito da luz solar, como os parélios (parhelia), ou mesmo poeira... Até que descobri que se tratavam das células brancas do sangue circulando nos capilares sobre a retina em frente à mácula, como descrito por Scheerer, em 1924. Minha reação a essa descoberta não foi muito diferente da reação de uma amiga que, após ouvir minha explicação, me respondeu: “Acabasse de sepultar um pedacinho da minha infância. Eu pensava que eram fadas.”
Então, seguindo com a viagem da informação visual para o cérebro, temos que, após todos estes fenômenos a que esta informação está sujeita, ela ainda passará por mais uma deformação antes de chegar ao cérebro propriamente dito: toda informação visual é dividida e tem seus lados trocados na decussação dos nervos ópticos, o quiasma óptico.
Depois de passar pela decussação dos nervos ópticos, a imagem que chega ao lobo occipital será mais ou menos como a do diagrama desta página: deformada, borrada, invertida no eixo vertical e trocada no eixo horizontal.
O que ocorre, a partir daí, é um todo um processamento da imagem decomposta em impulsos elétricos que armazenam as informações captadas pelos olhos e a transformação destes impulsos em uma representação virtual daquilo que estamos enxergando. Nossos cérebros não fazem cópias, mas criam uma representação compreensível daquilo que está no nosso campo de visão e, que em termos evolutivos, permitiu nossa sobrevivência e adaptação ao ambientes em que nossos corpos de mamíferos de médio porte precisavam navegar.
Ainda que a maior parte do processamento de informações se dê a partir do lobo occipital, algumas informações são processadas por vias que precedem o mesmo, tais como a detecção de bordas, pelas células ganglionares, ou a detecção de luz, que chega ao núcleo supra-quiasmático diretamente por meio do trato retino-hipotalâmico. Porém tal processa-mento é inconsciente e se relaciona, em grande parte, a funções vegetativas, tais como o controle do ritmo circadiano.
As informações visuais chegam da retina ao núcleo geniculado lateral e são enviadas diretamente para o lobo occipital onde começam a ser preparadas. A partir do córtex visual primário, também conhecido como área V1 (ou área de Brodmann 17), localizado após a fissura calcarina, informações sobre movimento e absência de movimento começam a ser traçadas, assim como reconhecimento de padrões.
Além disso, sua área superior responde imediatamente ao campo inferior da visão, assim como sua área inferior responde imediatamente ao campo superior da visão, mostrando correlação com a visão espacial quando considerados ambos os hemisférios e sua participação no fenômeno de rivalidade binocular. É nesta área também, que ocorre um outro fenômeno conhecido como magnificação cortical, ou seja, em animais que possuem máculas, uma parte maior da área V1 responde diretamente a mácula (menor parte da retina) do que a parte que responde às suas vizinhanças (maior parte da retina).
Depois de processadas pela área V1, as informações passam para a área V2, a segunda maior área do córtex visual, que se divide em quatro quadrantes, um dorsal e um ventral para cada hemisfério, replicando o sinal para as áreas V3, V4 e V5. Seu processamento é semelhante ao que ocorre na área V1, porém estudos indicam uma maior participação na atenção modular (maior que na área V1, menor que na área V4, especializada em detecção de padrões complexos.
O complexo da área V3 recebe os sinais da área V2 e os transmite para o lobo parietal e para o lobo temporal, sendo que seu processamento está possivelmente relacionado com a noção total de movimento percebido, embora seja mais comum relacioná-lo a uma área maior de processamento uma representação de todo o campo visual.
A área V4 se assemelha à área V1 em seu processamento, incluindo processamento de cores, mas difere da mesma no que diz respeito à complexidade geométrica que lá é processada. Enquanto a área V1 processa figuras geométricas com maior detalhes e complexidade, a área V4 processa figuras mais simples. Estudos recentes indicam que esta área está relacionada à atenção seletiva e que apresenta uma maior plasticidade em relação as demais áreas do córtex cerebral.
A área V5 (médio temporal), está diretamente associada com a percepção de movimento global, pois pacientes com danos nesta área enxergam um mundo estático, que se atualiza quadro a quadro, e também com o movimento dos olhos. Contudo é difícil determinar exatamente que tipo de processamento de movimento ocorre nesta área pois nas áreas anteriores o movimento também é processado.
O que se depreende do estudo das divisões das áreas do córtex visual, é que elas são especializadas em identificar e processar informações de cor, forma, tamanho, movimento individual e global, intensidade e perspectiva, e que se relacionam com a atenção global e com a atenção seletiva. Nestas áreas o input é novamente divido em quatro partes, ou circuitos, que distribuem a informação que é processada nos diferentes níveis, para os lobos parietais e temporais dos hemisférios direito e esquerdo.
Embora o córtex visual termine com a área V5 e a área visual dorsoparietal, e que neste córtex seja formada uma interpretação ou representação organizada do input visual que recebemos, o processamento de imagens não termina aqui. Para onde seguem estes impulsos depois de processados pelo córtex visual?
O que se sabe hoje é que eles são divididos em duas correntes, para cada hemisfério, como visto na área V3, uma em direção ao lobo parietal e outra em direção ao lobo temporal, passando pelo giro superior temporal, onde se localiza, no hemisfério esquerdo, a área de Wernicke, especializada na linguagem. O giro superior temporal é uma das maiores diferenças anatômicas entre os seres humanos e os demais primatas, sendo incomparavelmente maior nos seres humanos, como aponta o neurocientista V. S. Ramachandram. Um outro neurocientista, Allan Snyder, relaciona a emergência dos processos superiores de linguagem com o início da predominância do hemisfério esquerdo sobre o hemisfério direito, levando a uma ofuscação das funções deste último. Snyder relata ter percebido isso ao tratar de uma criança, aparentemente superdotada por ser capaz de desenhar figuras com muitos detalhes, corretas em proporção, perspectiva e movimento, mas que era incapaz de fazer uso da linguagem, embora já estivesse em idade de dominar as palavras. Com o sucesso do tratamento suas habilidades artísticas foram completamente suprimidas e deram lugar aos desenhos normais que se espera de uma criança da mesma idade.
Desenhos de cavalos feitos por uma criança normal de 4 anos de idade, a esquerda, e desenho de cavalo feito por uma criança savant de 3 anos de idade (imagens obtidas em: (http://discovermagazine.com/2002/feb/featsavant).

Algo semelhante pode ser concluído de uma passagem do livro Introdução à Psicologia, de Davidoff, que fala sobre memória eidética, e o fato desta estar presente em cerca de 2% das crianças e numa proporção muitas vezes menor nos adultos, mostrando que esta também é uma habilidade que é suprimida com o avanço da idade.
A teoria é que a emergência da linguagem na área de Wernicke nos permite criar uma meta-representação socialmente útil da representação que é apresentada após o processamento de informações pelo no córtex visual, porém a predominância do hemisfério esquerdo sobre o hemisfério direito, tendo em conta suas habilidades específicas, subtraem parte do potencial criativo de execução e abstração dos seres humanos, além de uma percepção mais acurada de informações visuais e espaciais – aspecto que está relacionado à atenção e à memória.
Concluímos este trabalho com a observação de que a consciência é formada pelo conjunto de sistemas que nos trazem informações do mundo exterior e, também, das informações interiores que recebemos de nossos corpos, juntamente com aquilo que nossas mentes são capazes de fazer com estas informações. Quando estamos conscientes, estamos conscientes de algo. O quanto de resposta podemos dar para ou sobre este algo (parafraseando Pedrinho Guareschi) é o que irá definir o quanto de consciência nos temos, além de nossa habilidade de adaptação e resolução de problemas.
Daniel Dennett compara a consciência com as modernas técnicas de ilusionismo: “A mágica, para ser verdadeira, precisa ser falsa (referindo-se aos ilusionistas), pois a mágica se dita verdadeira, é falsa.” No sentido que, para compreender o mistério da consciência, não devemos procurar respostas complexas, mas um conjunto de respostas simples que fazem “a mágica” acontecer, como nos truques de ilusionistas.
Entendendo o conjunto, e estudando ele sob o contexto de nossa realidade de seres humanos, criaturas que se movem por um mudo macroscópico de tamanho médio, como muitos dos mamíferos, mas que estuda e analisa o mundo microscópico e o mundo cósmico do espaço, sem esquecer de olhar dentro de si mesmo e perguntar: como eu faço isso?

Locais e obras consultados:
Brandão, M. Psicofisiologia: as bases fisiológicas do comportamento;
Center for the Mind. http://www.centerforthemind.com
Davidoff, L. Introdução à Psicologia;
Discover Magazine. http:/www.discovermagazine.com
Guareschi, P. Psicologia Social Crítica.
Myers D. Psicologia;
Netter Atlas de Anatomia;
Revista Mente & Cérebro;
Revista Psique;
TED: Ideas worth spreading. http://www.ted.com
Wikipedia. http://www.wikipedia.org
YouTube. http://www.youtube.com
Obs.: esta "resenha" foi escrita em uma tarde, num processo "on the fly" - por assim dizer, logo, boa parte do que está aqui eu botei de cabeça... Este é o motivo de eu ainda não ter elaborado um referencial bibliográfico adequado, coisa que não irei fazer para os fins deste blog, uma vez que eu suponho que se a pessoa chegou até aqui é por que sabe usar o Google.

Nenhum comentário: