quarta-feira, 14 de maio de 2008

Recortes: A História Humana - Uma nova história da Evolução da Humanidade

Robin Dunbar
A História Humana
Uma nova história da Evolução da Humanidade
faber & faber, 2004

Dunbar - A História Humana

pg 43

Aqui está um teste muito simples que você pode fazer com qualquer criança. Sally e Ann são duas bonecas. Sally possui uma bola. Ela põe a bola sob a almofada do assento da cadeira. Então, ela deixa a sala. Enquanto ela está fora da sala, Ann pega a bola debaixo da almofada e a esconde na caixa de brinquedos do outro lado da sala. Mais tarde, Sally retorna à sala. Onde Sally imagina que estará sua bola?

Até a idade de cerca de quatro anos, uma criança irá instintivamente responder: "Sally pensa que a bola está na caixa de brinquedos." Uma criança desta idade não pode distinguir seu próprio conhecimento acerca do mundo do conhecimento de outros indivíduos. Mas entre a idade de quatro e quatro anos e meio, a criança passa por uma fase de rápido entendimento. A partir de cerca dos quatro anos e meio em diante, ela irá responder a questão dizendo que Sally pensa que sua bola está sob a almofada, "...mas eu sei que ela não está lá." Neste ponto, a criança é capaz de reconhecer que outro indivíduo pode ter uma crença acerca do mundo que difere de sua própria crença, uma crença que ela sabe (ou pelo menos imagina) ser falsa. Neste ponto, se diz que a criança adquiriu uma "teoria da mente" - ela instintivamente compreende que os outros possuem mentes próprias, não diferentes daquilo que ela experiencia como sendo a sua própria mente. Esta forma de compreensão, as vezes também conhecida como "leitura-de-mente" ou "mentalização", é um aspecto notável e crucial da psicologia humana.
Testes como o de Sally-Ann são chamados de tarefas de "crenças-falsas" pois para vencerem, as crianças precisam compreender que outro indivíduo pode ter uma crença falsa (uma que a criança sabe ser falsa ou, pelo menos, uma que é diferente daquela que a criança supõe ser verdade). Existem atualmente vários testes como este. Outro [deles] é chamado de "Teste do Smartie". Neste teste você mostra para a criança uma embalagem de Smarties [confeitos doces, como o Mentos] e pergunta: "O que você pensa que há na embalagem?" Inevitavelmente a criança irá responder: "Smarties." Então você abre a embalagem e a criança vê que, na verdade, ela continha alguns lápis. Depois de fechar a embalagem, você diz para a criança: "Eu irei trazer o seu amigo Jim para a sala. O que você imagina que Jim irá dizer que há na embalagem?" Até a idade de quatro anos, a criança irá invariavelmente dizer "lápis", por não ser capaz de distinguir entre o seu próprio conhecimento da situação e o conhecimento de outras pessoas; mas após os quatro anos e meio, aproximadamente, a criança irá responder, com uma convicção rapidamente crescente, "Smarties."
Testes deste tipo se tornaram a medida do desenvolvimento das habilidades das crianças para inferir os estados mentais dos outros. Eles representam a pedra fundamental no processo do desenvolvimento da criança pois demarcam o momento em que a criança pode começar a envolver-se com um mundo imaginário que não está fisicamente presente. Elas podem, agora, começar a se envolver nestas formas de jogos simulados que são tão característicos da infância - para imaginar que a boneca está realmente viva e pode sorver o líquido na ponta de um trapo ou de uma mamadeira. Elas podem tomar parte nos cházinhos de suas bonecas, fingindo que o bule vazio realmente contém chá para servir as xícaras e que, mais tarde, elas mesmas poderão beber o chá "real" de xícaras que de fato estão vazias.
Aqui reside o grande mistério do desenvolvimento infantil, pois as crianças não nascem com esta habilidade. Bebês tendem a tratar o mundo como sendo exatamente como eles o experienciam. Eles não são capazes de imaginar que o mundo poderia ser diferente daquilo que é percebido. Lhes falta a habilidade de imaginar. E, por não serem capazes de imaginar que o mundo é diferente daquilo que eles conhecem, eles não são capazes de supor que outro indivíduo - criança ou adulto - acredita em algo como sendo verdadeiro se eles sabem que este algo é falso. E, como resultado disso, eles não são capazes de fazer algo que é, de alguma forma, a marca característica do mundo adulto: explorar a visão de mundo de outro indivíduo para contar-lhe uma mentira.

A Arte de Ler Mentes

Neste ponto, eu preciso introduzir um termo técnico. Algumas décadas atrás, filósofos interessados na natureza das mentes criaram o termo "intencionalidade" para se referir aos tipos de estados mentais que nós temos quando nós estamos conscientes de defender algum tipo de crença, desejo ou intenção. O termo se refere coletivamente à estados mentais como conhecer, acreditar, pensar, querer, desejar, almejar, intencionar, etc. Ele se refere ao estado de estar consciente do conteúdo [das motivações, alguns diriam] de nossa própria mente. Intencionalidade pode ser concebido como sendo uma série hierarquicamente organizada de estados-de-crenças.
Neste cenário, computadores são entidades intencionais de ordem-zero: eles não estão conscientes dos conteúdos de suas mentes. Alguns organismos vivos, tais como as bactérias (e, talvez, alguns insetos) também podem ser seres intencionais de ordem-zero.
A maioria dos organismos que possuem cérebros de algum tipo estão provavelmente cientes do conteúdo de suas mentes: eles "sabem" que eles estão com fome ou "acreditam" que há um predador sob a próxima moita logo ali. Sobre tais organismos se diz que são possuidores de intencionalidade de primeira-ordem. Possuir uma crença sobre a crença de outrem (ou sobre as intenções de outra pessoa), constitui a intencionalidade de segunda-ordem, o critério para a teoria da mente (ou, como é mais conhecida na literatura técnica, TdM). Jane acredita que Sally pensa que sua bola está sob a almofada. Jabe possui uma dois estados de crença em sua mente (o seu próprio e o de Sally), então a teoria da mente é equivalente à intencionalidade de segunda-ordem.
Contudo, nós humanos [adultos] podemos tranqüilamente ir além desse nível. Peter quer que Jane acredite que Sally pensa que sua bola continua sob a almofada. Sally está na intencionalidade de primeira-ordem, Jane está na intencionalidade de segunda-ordem e Peter está na intencionalidade de terceira-ordem. Parece haver um limite superior naquilo que nós podemos fazer a este respeito. O senso comum sugere que humanos adultos possuem um limite absoluto em níveis de intencionalidade com que são capazes de lidar de cerca de cinco ou seis ordens: Peter acredita (1) que Jane pensa (2) que Sally quer (3) que Peter acredite (4) que Jane intenciona (5) que Sally acredite (6) que sua bola está sob a almofada.
Se sua mente acabou de ser revirada por esta sentença, não fique surpreso: poucos adultos humanos podem acompanhar direito quem está pensando o que aqui por causa que, no limite, existem muitas ordens de intencionalidade (destacadas pelos verbos numerados) para que sejamos capazes de acompanhar. A maioria das situações cotidianas provavelmente requerem não mais do que uma intencionalidade de segunda-ordem e, na prática atual, o limite para a maioria das pessoas é provavelmente por volta da quarta ou quinta ordem: Jane pensa (1) que Sally quer (2) que Peter suponha (3) que Jane intenciona (4) que Sally pense (5) que (algo concreto é o caso). Nós acabamos de perder a crença de Peter.
Nós sabemos que é ai onde o limite se encontra pois nós fizemos alguns testes para ver quão bem adultos humanos normais se saem [nesta tarefa]. No momento em que fizemos os testes, ninguém realmente conhecia os limites das habilidades humanas neste domínio. Todo o trabalho [até então] era focado na teoria da mente (intencionalidade de segunda-ordem) e grande parte deste trabalho foi realizado em crianças pequenas no ponto de transição no qual elas adquirem a TdM. Para poder explorar as capacidades dos adultos normais, nós criamos alguns contos de TdM que iam até seis ordens de intencionalidade.
Eu gostaria de ter sido capaz de dizer que nós divisamos a sexta-ordem de intencionalidade como o limite no caso destes contos por alguma razão científica incrivelmente sofisticada. Contudo, na realidade, a verdade é que eu achei impossível escrever uma história da TdM de sétima-ordem convincente. Os contos eram vinhetas curtas da vida cotidiana em cerca de 200 palavras: alguém querendo fazer um encontro com uma garota que ele pensava estar atraída por uma outra pessoa, ou alguém querendo persuadir seu chefe a lhe dar um aumento fingindo que lhe foi oferecido um emprego em outra empresa. Qualquer coisa mais longa do que a sexta ordem provou ser tão tortuoso que eu mesmo acabei ficando completamente confuso. Uma garrafa de whisky mais tarde e já bastante avançado nas horas da madrugada, eu desisti e me contentei com contos da sexta-ordem.
Nós demos os testes para cerca de 120 estudantes universitários. Eles deveriam ler os contos e então lhes era pedido para responder uma série de questões sobre quem estava pensando o quê. Cerca de 80 a 90 porcento dos sujeitos responderam as questões corretamente em qualquer nível até a quinta-ordem de intencionalidade. O que pareceu bastante razoável. Mas a performance dos sujeitos tornou-se evidentemente distinguível com as questões de sexta-ordem: apenas cerca de 40 porcento deles foi capaz de responder corretamente. Este é um dramático e súbito colapso naquilo que tínhamos, até este ponto, como sendo a performance de jovens adultos com QIs acima da média. Estes resultados parecem ser bem robustos, uma vez que nós fomos capazes de confirmá-los em um segundo estudo realizado algum tempo depois por Jamie Stiller, usando contos que iam até a nona-ordem.
Nós sabemos que este súbito colapso por volta da quinta-ordem não é apenas um problema de memória, pois nós também pedimos que respondessem questões sobre o conteúdo factual dos contos entre as várias questões de TdM e eles não tiveram problema nenhum com estas questões. Eles se lembraram dos principais eventos factuais de cada conto. Nós também demos a eles uma história factual simples detalhando a seqüência de casualidade relacionada com os eventos que levaram a um homem idoso a atear fogo em si mesmo quando ele adormeceu fumando. Este história possuía o mesmo tipo de estrutura hierárquica intrínseca que as histórias de TdM (A causa B, que causa C, etc). Os sujeitos não tiveram problemas com esta história: a porcentagem de respostas corretas manteve-se constante em cerca de 90-95 porcento até a sétima-ordem de concatenações de seqüências causais ("Quando A aconteceu, B seguiu-se, que lançou C, que resultou em D, que ativou o evento E, que deu início à F, que precipitou G"). Então o problema parece ser algo haver com a reflexividade dos estados mentais, mais do que apenas as seqüências causais per se.

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Esta é a minha tradução da resenha The Human Story -
A new history of mankind's Evolution, de Dunbar.
Original disponível em:
http://www.uboeschenstein.ch/texte/dunbar43.html

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