segunda-feira, 2 de junho de 2008

Três cartas de amor

Junho de 1784

Minhas cartas irão tratar de mostrar a você o quanto eu sou amável. Eu não almoço na Corte, eu não vejo muitas pessoas, e faço minhas caminhadas sozinho. Por cada lugar belo que passo, desejo que lá você esteja.
Não posso evitar amar você mais do que me é salutar; irei alegrar-me quando ver você novamente. Estou sempre ciente da minha proximidade para contigo, a tua presença nunca me abandona. Em ti eu tenho a medida para cada mulher, para todos; no teu amor, a medida para tudo aquilo que há de ser. Não no sentido de que o resto do mundo me pareça obscuro, pelo contrário, o teu amor o torna claro; eu vejo muito claramente como são os homens e quais são seus planos, desejos, suas ações e prazeres; eu não invejo aquilo que eles têm, e comparar é para mim um prazer secreto, por possuir, da maneira que possuo, tal tesouro imperecível.
Você, no teu lar, deve sentir-se da mesma maneira que geralmente me sinto nas minhas relações; nós geralmente não notamos alguns objetos, simplesmente por que não escolhemos olhar para eles, mas as coisas tornam-se interessantes tão logo quanto nós enxergamos claramente a maneira como elas se relacionam com as demais. Pois nós sempre gostamos de participar e, o bom homem, obtém seu prazer em arranjar, pôr em ordem e perpetuar a harmonia e sua plácida ordem. Adieu, a você, quem amo mil vezes.

Johann Wolfgang von Goethe



Dezembro de 1842

Tendo amado você o suficiente para lhe dar minha vida quando esta fosse o melhor que eu pudesse lhe dar -- tendo feito de você o centro de todas as minhas esperanças de felicidade nesta vida -- tendo jamais amado nenhum outro ser como eu tenho te amado, você não pode ser para mim como mais ninguém, e é completamente impossível que eu tenha, por você, qualquer indiferença.
Toda minha existência tem o desejo de ter você por seu único objeto, e todos meus pensamentos, minhas esperanças e minhas afeições têm sido, em plenitude, teus, me sendo completamente impossível esquecer disto -- de que eu precise um dia vir a esquecer que você um dia foi meu amante. Não posso te contemplar sem me comover; meu coração ainda responde à tua voz, e o sangue nas minhas veias aos teus passos.

Fanny Kemble



Dezembro de 1851

Você tem sido maravilhosa, minha amada, durante todos estes dias negros e violentos. Se eu precisei de amor, você o trouxe para mim, abençoada seja! Quando no meus esconderijo, sempre em risco, após uma noite de espera, eu ouvia a chave da minha porta tintilando nos teus dedos, o perigo e a escuridão já não me incomodavam mais -- o que entrava então era luz!
Não devemos jamais esquecer daquelas terríveis, porém doces, horas em que você ficava junto a mim nos intervalos da luta. Lembremo-nos de toda nossa vida naquele pequeno quarto escuro, das correntes antigas, das duas cadeiras, lado a lado, da refeição que tivemos na mesa de canto, do frango frio que você trouxe; nossas doces conversas, teus carinhos, tuas ansiedades, tua devoção. você estava surpresa em me encontrar calmo e sereno. Você sabe de onde veio minha calma e serenidade? De você.

Victor Hugo.
...

E teve uma vez que eu tentei escrever algo neste sentido também... Bom, não foi a única vez que tentei, mas compreendo que seja algo que representa bem o meu momento presente, aquilo que sou agora, o que me tornei. Acredito que demonstra bem como as pessoas mudam ao mesmo tempo que continuam a mesma coisa, mas que a mudança é significativa. Embotamento, embaçado, enfim, concisamente confuso. Continuo sozinho, a rede sináptica que havia se formado, o construto do objeto mental, isso já foi reclassificado em quanta e quali, tornou-se memória. Mas as vezes eu gostaria de compreender melhor a mim mesmo e ao que eu faço comigo mesmo.
Foi assim que tentei me expressar...


Gustav Klimt - O Beijo"Um carro em movimento passa por uma pessoa parada em uma rua. À distância da galáxia de Andrômeda, no mesmo instante em que o carro passa pela pessoa parada, duas coisas em tempos diferentes estarão acontecendo simultaneamente. Para a pessoa que está em pé, parada, um general alienígena poderia estar decidindo se invade ou não a Terra; para a pessoa no carro, em movimento, uma frota alienígena já estará a caminho para a invasão."

É desta forma que Roger Penrose (físico) ilustra um aspecto do Universo que, se estiver correta toda aquela loucura de Einstein, indica que cada observador (cada ser vivo pensante) possui seu próprio "plano de simultaneidade": as coisas que estão acontecendo neste momento, em nível cósmico, para mim, são diferentes das coisas que estão acontecendo neste momento, em nível cósmico, para ti.
Pensa bem... Forças que mal conseguimos imaginar, desde supernovas à buracos negros, ocorrendo em tempos diferentes para mim e para ti, e também para todos os demais seres que existem. Enquanto você lê este e-mail, uma estrela no céu pode estar brilhando ainda e, caso eu esteja em movimento, pode ser que esta mesma estrela já tenha se apagado.
É um Universo louco esse em que vivemos né?
Contudo, em algum lugar no tempo e no espaço a gente se encontrou. A gente conversa, interage e partilha coisas... Se não houvesse alguma harmonia nesse sistema, a vida como a conhecemos seria impossível.
O que quero dizer é que...
Andei pensando sobre aquilo que você me falou no carro... Mais do que tudo, me preocupou a expressão no teu rosto.
Você vive um momento presente, chegou neste ponto pelo o que foi o teu passado, faz planos para o futuro com base naquilo tudo que você passou, e o mesmo acontece comigo. Como não existem duas pessoas com histórias idênticas, é fácil concluir que existem diferenças de expectativas para ambos...
Mas não te esquece que todas nossas expectativas são conjecturas formadas por um dos últimos passos evolutivos do homem, o lobo frontal, uma maquininha de realidade virtual que, como Dan Gilbert (psicólogo) fala de forma resumida, pega todas nossas memórias, tempera com emoções por influência do sistema límbico, compara com aquilo que percebemos do momento presente e então faz previsões para o futuro que se traduzem em planejamento. Está provado estatisticamente que os resultados não são muito precisos... Por isso as pessoas cometem tantos erros em planejamentos de longo prazo.
Então pensa bem, ainda que o Universo com suas forças infinitas ande num passo diferente para nós dois, e ainda que nossas maquininhas orgânicas de realidade virtual fiquem nos dizendo várias coisas sobre o futuro, talvez seja mais provável que sejamos felizes vivendo o momento presente.
E o que é viver o momento presente? Segundo Lacan (psicanalista), a realidade só ocorre enquanto há interação: "É preciso trazer aquilo que vivemos e que sentimos para a ordem do real." O que faz sentido num Universo que se apresenta em descompasso para observadores incapazes de fazer projeções precisas quanto ao futuro.
Interagir é isso, é quando de alguma forma pensamos juntos. Sei que isso aconteceu diversas vezes quando estivemos juntos, pelo carinho, pelos sorrisos, por tudo de bom que já aconteceu... Foram momentos em que, ainda que todo o Universo lá fora estivesse revolvendo seja para quaisquer direções que fossem, conseguimos suprimir, pelo menos um pouquinho, a voz dos nossos lobos frontais quanto ao futuro, e deixamos que o colorido emocional do sistema límbico não ficasse dependente de memórias, apenas do presente.
E não é bom isso? Você não existia no meu passado, assim como eu também não existia no teu passado. O C. objeto mental com quem você interage, embora possua toda uma história de vida pregressa que só pertence ao passado, existe a partir do momento em que você começou a falar comigo, do momento em que começamos a interagir.
E te digo, este C. que existe hoje é muito melhor do que o C. que existia até o momento em que você me conheceu, e tem potencial de ser melhor ainda... É muito melhor aproveitar o que está acontecendo, do que ficar pensando num futuro construído com base naquilo que já aconteceu e já passou.
Como coloca o Pedrinho Guareschi (filósofo), nós somos como uma colcha de retalhos: aquilo que somos por dentro são como recortes daquilo que as pessoas com quem vivemos nos deram, nossas experiências. Neste sentido você me atualizou e, quando estou contigo, me sinto como uma colcha com menos furos... E isso é especial demais no frio deste inverno.
O único problema é que as vezes sinto que não consigo fazer o mesmo por ti. Digo as vezes, pois há momentos como quando estamos abraçados, ou quando você me olha nos olhos, e tudo o que vejo é carinho, que não sobram buracos e tudo o que existe é quente e aconchegante.
Mas têm vezes, como ontem no carro, que senti uma brisa entrando. Será que sou eu que não estou te provendo com os retalhos corretos para a tua colcha? Ou será que é você que resiste em costurá-los?
Imam Ali (1o califa e sobrinho de Maomé) e Eden Ahbez (hippie e ativista), afirmavam que a maior coisa que um ser humano pode aprender com a vida é deixar que um outro ser humano seja o pedacinho de colcha que falta, talvez justamente aquele que falta para aquecer os pés.
Não vivi o suficiente, nem tenho sabedoria o suficiente, para poder afirmar que eles estão corretos e que esta é a maior lição que há para se aprender. Mas já senti frio o suficiente para valorizar alguém que me proporciona alguns momentos do mais agradável calor humano que se possa desejar.
Deixa eu aquecer teus pés... Gosto de estar coexistindo com você e de ser parte da tua colcha de retalhos. Enquanto que as idéias se transformam, os sentimentos humanos permanecem os mesmos ao longo dos séculos, prova disso o quadro "O Beijo", de Gustav Klimt, pintado em 1908, do qual eu te mando o detalhe em anexo: é a mesma colcha de retalhos, o mesmo carinho, o mesmo sentimento; são apenas 100 anos de diferença, e continua sendo tão bom quanto sempre foi.

Um beijão carinhoso...
Saudades...
C.

Whatever that was, is no more.

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