segunda-feira, 2 de junho de 2008

Qualia: Descrição vs. Sensação

O filósofo Daniel Dennett aponta quatro propriedades que são geralmente relacionadas aos qualia:
  1. inefáveis: ou seja, não podem ser comunicados ou apreendidos por qualquer outro meio que não seja a experiência direta, ou experiência em primeira mão.
  2. intrínsecos: ou seja, são propriedades não-relacionais, que não mudam conforme a relação da experiência com outras coisas.
  3. privados: ou seja, todas as comparações interpessoais dos qualia são sistematicamente impossíveis.
  4. diretamente ou imediatamente apreensíveis na consciência: ou seja, experienciar os qualia é estar ciente de experienciar os qualia, e saber tudo o que há para saber sobre o quale que se está experienciando.

Faço um breve parêntese aqui para discutir a palavra qualia na língua portuguesa: Dennett, filósofo renomado e que a muitos anos participa ativamente da discussão a cerca dos qualia, usa a palavra qualia como sendo o plural da palavra quale. Desta forma, de agora em diante, este blog também irá utilizar-se desta forma para referir-se "ao aspecto do 'como é' dos estados mentais; como é experienciar um determinado estado mental, tal como dor, ver a cor vermelha, cheirar uma rosa, etc." (C. Eliasmith e P. Mandik) Vale lembrar que Dennett tem sido um crítico ferrenho quanto aos qualia, opondo-se até mesmo ao seu uso conceitual.
Feita esta observação...

Para Dennett, se os qualia existem da forma como exposta nos quatro itens acima, então uma pessoa que enxerga normalmente não seria capaz de descrever como é enxergar a cor vermelha para um ouvinte que nunca viu tal cor, um cego de nascença por exemplo, de maneira que este saiba tudo que há para saber sobre a experiência de enxergar o vermelho.
Contudo é possível realizar uma analogia, tal como "vermelho parece quente", ou dar uma descrição sobre as condições nas quais a experiência ocorre, tal como "é a cor que você enxerga quando a luz de 700 nm de comprimento de onda é dirigida à você". Obviamente, tais descrições não são suficientes para que uma pessoa que nunca enxergou saber tudo que há para saber sobre como é enxergar o vermelho.
Aliás, tais descrições ainda trazem uma nova luz para esta discussão: dizer que "o vermelho se parece quente" não deve significar muito, especialmente em termos visuais, uma vez que a cor vermelha é apreendida pelo sentido da visão, para alguém que nunca enxergou, e deve significar ainda menos, por exemplo, para uma pessoa incapaz de experienciar alterações de temperatura; da mesma forma, a descrição da "luz de 700 nm de comprimento de onda" é completamente insignificante para quem não sabe coisa nenhum da física. Imagine um homem do campo, não letrado, que nunca estudou física. Ele é completamente capaz de experienciar a cor vermelha, mas é incapaz de compreender a explicação física para tal cor, sem que maiores explicações sejam dadas. Da mesma forma o hipotético homem incapaz de sentir a temperatura mas capaz de enxergar, ele pode ver a cor vermelha, mas a descrição de que "o vermelho parece quente" não tem nenhum significado para ele. Isso parece confirmar a afirmação do filósofo John Searle de que os qualia estão intrinsecamente relacionados à consciência e desta não podem ser dissociados. Explico o por quê: um homem incapaz de sentir a temperatura mas capaz de enxergar, não associaria a cor vermelha ao calor, mas poderia associar esta cor a outras sensações, como alterações na pressão sangüínea que ocorrem em decorrência de uma experiência situacional específica onde a cor esteja presente, como ao receber um presente da pessoa amada ornamentado com a cor vermelha - p. ex. a pessoa amada em uma lingerie vermelha, isto certamente vai provocar alterações sensíveis na fisiologia da pessoa.
Concordo que os qualia sejam inefáveis, porém não concordo que eles sejam intrínsecos no sentido de serem independentes da relação da experiência com outras coisas, pois damos significa as coisas de forma associativa, relacional. Os qualia são mais do que simplesmente o significado pois são atuais, momentâneos, e por sua vez, o quale de agora pode modificar a maneira como compreendemos algo. Também discordo que os qualia sejam pessoais ou privados no sentido de tornarem impossíveis as comparações interpessoais. Na verdade, os qualia são uma das possibilidades de demonstrar os limites da linguagem em manifestar comportamentos internos, ou emoções, sentimentos, etc. E aponto para o último item, que afirma que os qualia são imediatamente apreensíveis à consciência, sendo que experienciar um quale é saber tudo o que há para saber sobre um quale. De fato, experienciar um quale é saber tudo o que há para saber sobre a experiência pessoal e subjetiva daquele quale, o que não inclui o conhecimento obtido de outras formas a respeito da experiência sensorial e perceptual humana. Ver a cor vermelha não irá fazer com que subitamente uma pessoa saiba e compreenda que se trata de um reflexo de luz de 700 nm de onda; mas será suficiente para que a pessoa saiba tudo que há para saber sobre sua experiência pessoal naquele momento. Mais uma vez, vamos aos limites da linguagem, pois quer a pessoa saiba dos detalhes físicos (ou mesmo outros detalhes como fisiológicos e anatômicos, ou ainda outros relacionados em um outro post), quer a pessoa saiba apenas que se trata da cor vermelha e nada mais, aquela será a sua experiência pessoal.
Penso que seria melhor descrevê-los como intrínsecos no sentido de dependerem da experimentação ou da evocação mental da coisa associada, p. ex. a cor vermelha: aquilo que sentimos e experienciamos ao enxergar ou visualizar mentalmente o vermelho depende do contexto, assim como depende da coisa em si -- você não irá experienciar o vermelho na ausência deste, física ou mental (no caso de alguém que jamais enxergou o vermelho); e privados enquanto as comparações são possíveis mas limitadas pela capacidade da linguagem em transmitir e verbalizar objetos mentais e seus significados.
Por fim, o mais importante deste post e o motivo inicial que eu tive para escrevê-lo, foi algo óbvio do qual me dei conta ao revisar o experimento de Maria, a supercientista. Ainda que alguém leia toda a literatura técnica em todas as áreas sobre uma determinada experiência sensorial, assim como todas as descrições de tal experiência que há na literatura mundial, ainda assim esta pessoa não irá ativar os circuitos neurais responsáveis pela tomada de consciência da experiência no momento em que a experiência ocorre. Mais do que isso, confirmando minha correção quanto ao aspecto intrínseco dos qualia, toda atividade mental consciente ocorre com a ativação paralela de diversos circuitos neurais pois nosso pensamento é de natureza associativa, o que é básico para o processo de aprendizagem. Desta forma, é fácil compreender que os qualia sejam, de fato, únicos a cada indivíduo, da mesma forma que é única sua organização sináptica e, por que não?, sua química cerebral.
Fica claro que o "grande problema" em relação aos qualia têm sido suas definições dualistas e vagas, ainda não eliminem a subjetividade da experiência, nem a validade do conceito, que apenas precisa ser refinado.
Ao longo dos meus estudos, adquiri uma compreensão monista e fisicalista da mente, ou seja, esta existe enquanto matéria e deve ser explicada como tal, mas mais do que isso, que a mente é uma reação electroquímica (sinapses elétricas/sinapses químicas), intrinsecamente ligada à vida, ou ao estado de estar vivo. Entendo que a mente é o total atual das reações químicas que ocorrem entre as sinapeses, ou o estado atual destas reações, sendo então uma mente dinâmica, sempre em transformação tanto quanto são os pensamentos, as percepções e as sensações. A mente liga-se com o corpo por meio das sinapses, tais como as sinapses motoras.
Cada mente é única, dada a enorme quantidade de neurônios envolvidos, das possíveis ligações entre eles e pela plasticidade cerebral, que está relacionada ao ambiente, mais especificamente às experiências vivenciadas no ambiente, estímulos e conseqüências. Desta forma também será única a experiência de cada indivíduo, assim como são diferentes, ou infinitas, as maneiras pelas quais se pode aprender um conceito, e como a aprendizagem é temperada pela emoção como é visto no estudo de estruturas neuronais importantes para a memória de longo prazo.
Não há contradição entre mente, consciencia, qualia e a doutrina monista/fisicalista, contanto que se redefina ou se defina corretamente o que se entende com estas palavras.

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