segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Experimento do João da Mão

Eu posso te dizer como é, mas
só você pode saber o quanto é.

Estive relendo o experimento mental de Mary, a supercientista, e discutindo com um amigo a respeito do assunto, quando me dei conta de algo crítico em relação ao experimento: embora muitas vezes uma percepção consciente visual possa ser carregada de emoções fortes, em geral, na maior parte do tempo, nossa percepção visual não é algo que desperte reações fisiológicas/emocionais realmente fortes em nossos corpos. Observar uma revista masculina ou mesmo uma mulher despindo-se está longe, em termos de reações que ocorrem no nosso organismo, de ser o mesmo que uma relação sexual.
No experimento de Mary, a supercientista, em suas várias versões, basicamente a protagonista do experimento deixa um quarto preto e branco, ou sofre uma operação para adquirir a visão colorida, e se depara com algum estímulo tal como uma banana, ou uma rosa, ou um quadro... Convenhamos, são coisas de certo modo interessantes, especialmente para quem nunca viu cores, mas são estímulos que não eliciam grandes respostas do organismo, com excessão da banana, caso a pessoa esteja faminta, ou do quadro, se for um quadro realmente espetacular. Além disso, com excessão de que a protagonista estivesse com fome -- no caso de uma banana -- ou fosse sinesteta -- nos demais casos, apenas uma modalidade perpectiva seria evocada em maior medida.
No cérebro, na vida, as coisas não são tão simples, são mais dinâmicas, as modalidades perceptivas interagem em grande medida -- ouvimos um som e quase como que por reflexo viramos nossos olhos em direção ao som, ou fechamos os olhos no caso de uma grande explosão, etc --, e em algumas experiências em especial, muitas modalidades interagem para dar o sentido à experiência. Bons chefs de cozinha sabem que grande parte do sucesso de um prato depende da apresentação do mesmo, a aparência, suas cores, além, é claro, do paladar e do aroma.
Mas mais do que a interação entre as diferentes modalidades perceptivas, algumas experiências em especial desencadeiam fortes reações fisiológicas que modificam a maneira como nos sentimos no momento em que elas ocorrem. Após nos alimentarmos, por exemplo, temos a sensação de saciedade. Mas não é uma sensação tão relevante, pois pode-se dizer que é uma sensação fácilmente ignorada -- não é a toa que a obesidade é um problema nos dias atuais.
Por isso tudo, proponho que o experimento de Mary, a supercientista, venha a ser remodelado ou substituído por um experimento que envolvesse a interação de diferentes modalidades de percepção e também uma forte reação fisiológica que não pudesse ser ignorada.
Dentre as experiências possíveis, é possível citar o medo, mas acredito que mais interessante seria a experiência sexual. O ato sexual envolve em grande medida todos os sentidos: tato, propriocepção (interocepção e exterocepção, sem dúvida), paladar, olfato, visão, audição, além das respostas motoras e gladulares. Não apenas todos os músculos do corpo são utilizados, mas em especial os músculos que coordenam a fala, pois o comportamento verbal também é importante nestas horas. Enfim, no cérebro tudo interage, as diferentes áreas se afetam mutuamente, e sem dúvida tal interação é importantíssima para a subjetividade da experiência consciente.
Então o experimento que proponho seria mais ou menos assim...
Imagine um rapaz adolescente, que não tem muito sucesso com as garotas, e que já passou dos 15 anos de idade, dos 16, dos 17, e está chegando aos 18 sem ter tido nenhuma experiência sexual envolvendo outra pessoa. Tudo o que este rapaz sabe sobre sexo é aquilo que ele ouviu falar na televisão e em conversas com amigos, aquilo que ele aprendeu em palestras de prevenção de DSTs na escola, alguma coisa que ele aprendeu nas classes de biologia, aquilo que ele leu e viu em revistas masculinas e em filmes adultos. Mas este é um rapaz singular, muito inteligente e determinado, com uma memória quase sobrehumana e uma ótima capacidade de compreensão. Ele também é um grande admirador da linha de pensamento do Daniel Dennett e resolve que, se ele não consegue ter a coisa real, ele irá estudar a fundo o assunto até que saiba tudo a respeito. Nada faltaria a ser acrescentado, então, por sua falta de experiência prática no assunto.
O rapaz, que neste experimento se chama João, resolve então assistir a aulas de antropologia, de psicanálise -- claro --, de psicologia social, de fisiologia humana, estuda o comportamento reprodutivo animal, adquire e lê vários livros e documentários sobre reprodução humana e sobre sexo e, por fim, participa de um curso extensivo, porém apenas teórico, com alguns dos maiores sexólogos contemporâneos.
Assim, João fica sabendo tudo o que há para saber a respeito de sexo: tudo o que ocorre fisiologicamente no corpo tanto do homem quando da mulher durante todos os passos que levam ao sexo e durante o sexo, como se dá a reprodução, todas as posições do kama sutra e das centenas de filmes adultos que assistiu... João até mesmo exerceu muito o cinco contra um durante todo esse processo de aprendizagem, utilizando todos estes recursos audio-visuais e imaginativos. Ao completar, João acreditava que não havia mais nada que o sexo pudesse lhe acrescentar, que ele já não soubesse... Ou será que havia?
João já havia visto como um homem toca uma mulher durante o sexo, e como uma mulher toca um homem, mas até então João apenas havia tocado a si mesmo. Mesmo assim, ele sabe descrever toda a fisiologia táctil. João já havia ouvido gemidos e frases em filmes adultos, mas jamais havia ouvido nada disso próximo ao seu ouvido, acompanhado do hálito quente de uma mulher, ou da estimulação táctil da língua dela no ouvido externo. João já havia feito muito o cinco contra um, mas esta prática não envolve sentir o peso de outra pessoa, nem o cheiro, nem a temperatura do corpo, nem todo o feedback que se recebe para o próprio comportamento.
É como quando você está prestes a chegar ao orgasmo, você olha para o rosto da pessoa -- ou para as costas da pessoa, ou para qualquer parte do corpo da pessoa que a posição permitir, mas é especialmente olhar para o rosto da pessoa -- você olha para o rosto da pessoa e o que você vê? Você vê pupilas dilatadas, ou os olhos entreabertos, você vê a boca entreaberta, e escuta um gemido, os lábios vermelhos dos beijos e/ou da pressão sangüínea que aumenta, você vê a face tornar-se rubra... Vermelho. O cânon dos qualia.
É possível descrever como você vê, como ocorrem as percepções envolvidas: fótons são captados pelas moléculas de rodoxina nas células fotorreceptoras da retina, que transformam este estímulo em impulsos nervosos, que são invertidos no quiasma óptico e enviados ao colículo superior, que localiza-se logo acima do colículo inferior na parte dorsal do mesencéfalo, que por sua vez recebe os impulsos nervosos do nervo auditivo; posteriormente a informação visual sobe ao núcleo geniculado lateral, próximo ao núcleo geniculado medial que recebe informação auditiva, e é enviada à área V1 do córtex visual, enquanto que a informação auditiva é enviada ao córtex auditivo no lobo temporal; a informação visual, depois de processada pelo córtex visual, se divide em duas correntes que são enviadas dorsal e ventralmente, sendo que a corrente ventral irá para o lobo temporal onde curiosamente coisas como rostos ganham significado. Tanto a informação auditiva quanto visual e táctil são trafegam no cérebro em correntes, ou vias, que acabam interagindo de uma forma ou de outra pela excitação das áreas especializadas próximas as áreas de destino, é fácil compreender isso observando o homúnculo do córtex motor, próximo a área de broca, pelo fato da área que controla os movimentos envolvidos na fala ficar próxima a área que controla os movimentos das mãos, por isso gesticulamos e conseguimos escrever. De certa forma, pode-se dizer que a escrita era algo biologicamente determinado para a espécie humana.
Bom, mas tudo isso diz respeito a apenas visão e audição, ainda que da mesma forma pudessem ser descritos todos os demais sentidos. E mesmo que se descrevesse de forma mais detalhada do que a forma como foram descritos acima, todos os sentidos envolvidos, ainda faltaria descrever o orgasmo em si. O gozo. Não apenas o gozo fisiológico, toda a imensa e forte cascata química que deflagra as sensações de prazer que ocorrem junto com a ejaculação, mas também o gozo cognitivo, aquele que se dá quando o ato sexual é da espécie mais complexa de comportamento, quando o quale, a qualidade do orgasmo em si, está atrelada a empatia que se tem pela contraparte que participa do ato e pelo desejo de que pra ela seja interessante e intenso também.
Tudo isso pode ser descrito de uma forma ou de outra. Mas é o suficiente, não fica faltando um pedacinho de informação?
Esse é o pedacinho de informação que diz respeito à experiência consciente em primeira pessoa, e -- vejam só que engraçado -- é justamente por meio deste pedacinho de informação que foge do alcance da linguagem, que se dá, de fato, a apropriação da experiência. O como é, o sentir, o experienciar.
Acredito que este experimento precisa ser lingüisticamente mais lapidado, de forma a economizar em argumentos e descrições e ser mais objetivo quanto ao que se quer demonstrar, mas quem quer que tenha entendido o ponto, acho que ele não só serve para apontar o aspecto inefável, ou que não pode ser transmitido, dos qualia, mas mais do que isso, pelo menos ao meu ver, ele também é uma forma de explorar o conceito de que a apropriação da experiência não depende da linguagem.

Ver: Daniel Dennett, em Crenças Científicas.

*** Aquilo que se pode descrever é justamente diferente daquilo que de fato é a apropriação da experiência, daquilo que torna a experiência única para cada indivíduo. Como, então, podem afirmar que a aquisição da linguagem é condicional para a apropriação da experiência, se justamente é naquilo que escapa da linguagem que se dá a apropriação?

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