quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Metapsicologia Freudiana e a Neurociência

Freud foi um dos primeiros pensadores a estudar o funcionamento da mente e da memória humana sob um prisma físico e não abstrato. Levando em conta que ainda hoje sentimos os efeitos do dualismo de Descartes (Damasio, 1995), e a época na qual Freud viveu, suas investigações em neurologia são extremamente relevantes – e surpreendentemente pouco conhecidas em seus aspectos mais importantes: em muitos cursos introdutórios de Teoria Psicanalítica e História da Psicologia mal são citados seus estudos com enguias (Schultz & Schultz, 2005).
O princípio no qual Freud se baseou é o de que existe uma energia que tem uma origem, um percurso, um armazenamento e um destino, dentro do organismo humano, e que flui através de um meio físico, que é o sistema neurológico (Machado, 2004). Curiosamente, Freud apontava tanto para causas endógenas, tais como fome, tensão sexual, etc; quanto para estímulos do meio e associações entre estímulos:
Freud concluiu que estímulos endógenos, gerados pela fome ou pelo desejo sexual - por exemplo, iriam permanecer circulando pelo sistema até que estas necessidades fossem aplacadas. Desta forma, estes estímulos necessitavam daquilo que ele chamou de "ações específicas". Mas uma ação específica - perfazer a ação apropriada sobre o objeto apropriado para satisfazer uma demanda biológica e terminar o fluxo de estímulo endógeno - necessitaria de uma configuração considerável. Ele então ofereceu uma hipótese sobre como tais ações poderiam ter início. No princípio, quando um bebê estava com fome, por exemplo, a fonte de comida era simplesmente colocada na boca do bebê quando este virava sua cabeça. A comida satisfazia a necessidade biológica e o estímulo endógeno cessava, causando a redução da energia e um sentimento de prazer. Seguindo a tradição psicológica que vai de encontro a Hobbes, Freud assumia que os estados mentais que eram experienciados juntamente e eram acompanhados pelo prazer, tornavam-se especialmente associados ao seio materno, a sensação sinestésica de movimentar a cabeça e, talvez, muitas outras sensações que se tornariam intimamente associadas. (Kitcher, 1992)

Fica clara, também, a influência da física newtoniana (conservação de energia, etc) em seus estudos iniciais, embora Freud não tenha chegado a quantificar tal energia, nem mesmo definir sua natureza físico-química - coisa que só veio a se estabelecer com estudos em neuroquímica e neurobiologia molecular, nas décadas de 1950 e 1960. Na época de Freud ainda havia discussões a respeito da natureza do tecido neural, e pouco se sabia a respeito das sinapses.
Notáveis, neste sentido, são as observações de LeDoux (2003) sobre tal momento da história da neurociência: Todos os órgãos são formados por tecidos que, por sua vez, são formados por células, mas diferentemente das células de outras partes do corpo, as células do cérebro – os neurônios – comunicam-se diretamente entre si. Apenas em 1837 tomou-se conhecimento da existência de células formadoras de tecidos por meio do trabalho do botânico Matthias Schleiden. No ano seguinte, o memorável Theodor Schwann estendeu esta noção aos animais, unificando botânica e zoologia em uma única teoria celular, segundo a qual todos os seres vivos são compostos por células. Contudo, levou décadas para decidirem se tal teoria era aplicável ao cérebro, pois este não apresentava estruturas que se assemelhavam às células até então conhecidas: diferente das células de outros órgãos, as células cerebrais apresentavam fibras que se estendiam partindo do soma. Isto levou alguns cientistas a acreditar que o cérebro era único – não composto por células discretas, mas por um emaranhado de fibras ou um retículo de elementos continuamente conectados. Outros, contudo, acreditavam que a teoria das células aplicava-se ao cérebro também, entre eles estava o jovem Sigmund Freud.
As duas figuras mais importantes no debate que ficou conhecido como a ‘Guerra das Células’ eram Santiago Ramón y Cajal e Camillo Golgi. Enquanto Golgi defendia a ‘Teoria Reticular’, Cajal defendia a ‘Doutrina do Neurônio’. Cajal ganhava muitos seguidores com seus métodos inovadores, entre eles estava Wilhelm Waldeyer, que em 1891 sugeriu o nome ‘neurônio’ para as células do cérebro.
baseado no Synaptic Self - Joseph LeDoux
Já em 1883, Freud postulava que as células nervosas eram fisicamente separadas umas das outras, conceito que ele veio a explorar mais amplamente no trabalho “Projeto para uma Psicologia Científica” (1895), ou simplesmente ‘O Projeto’, como veio a ficar conhecido.
Freud também introduziu o conceito de ‘barreiras de contato’ para descrever os pontos onde os neurônios se encontravam, e sugeriu que a interação entre os neurônios através das barreiras de contato era o que tornava possível a memória, a consciência e outros aspectos da mente humana. Embora estes conceitos fossem absurdamente sofisticados e a frente de seu tempo, Freud imaginava que a neurociência iria evoluir em passos muito lentos para seu gosto, vindo a abandonar a teoria neural em favor de uma teoria puramente psicológica. “O resto é história [da psicanálise]...” – Dois anos depois que Freud escreveu ‘O Projeto’, Sir Charles Sherrington, alheio ao trabalho de seu colega, propôs o termo sinapse para aquilo que Freud chamava de barreira de contato.
Em 1906, Golgi e Cajal receberam o prêmio Nobel por seus estudos em anatomia cerebral... E, com o passar dos anos, a psicanálise veio a tornar Freud um ícone popular.

Fontes:
DAMASIO, Antonio. The Human Heart in Conflict. Modern Neurobiology and the Idea of Medicine. In: Descartes’ Error: Emotion, Reason, and the Human Brain. 1995.
KITCHER, Patricia. Two Principles of Mental Functioning. In: Freud's Dream: A Complete Interdisciplinary Science of Mind. MIT Press, 1992.
LeDOUX, Joseph. The Most Unaccountable of Machinery. In: Synaptic Self: How Our Brains Become Who We Are. 2003. p. 37-9.
MACHADO, Elci F. Elementos do APF. In: Metapsicologia: Princípios para um Conceito Alternativo de Cognição em Inteligência Artificial. 2004. p. 27.
SCHULTZ, Duane P. e SCHULTZ, Sydney E. História da Psicologia Moderna. 2005. p. 355.

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