segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Mais uma peça para o quebra-cabeça da mente

“Podem haver duas maneiras básicas nas quais estes tipos de processos podem ter sido arranjados no cérebro. Primeiro, uma operação de dois sistemas pode existir, na qual há um sistema para responder aos perigos típicos à espécie (inato ou programado geneticamente) e outro [sistema] para aprender sobre novos perigos experienciados pelos indivíduos em suas vidas. Ou pode haver apenas um sistema, que dá conta de ambas as situações. De fato, os experimentos têm mostrado que esta é a maneira como o cérebro realmente funciona.
Um dano na região do cérebro chamada de amígdala elimina a tendência que os ratos têm de congelar na presença tanto de um gato quanto de um som [estímulo aversivo]. A amígdala é parte do sistema cerebral que controla o comportamento de congelar e outras respostas defensivas em situações ameaçadoras. Suas sinapses são arranjadas pela natureza para responder ao gato, e pela experiência para responder da mesma maneira aos perigos sobre os quais se aprende. É uma maneira maravilhosamente eficiente de fazer as coisas: ao invés de criar um sistema separado para acomodar a aprendizagem sobre novos perigos, basta habilitar o sistema que já foi arranjado pela evolução para detectar perigos para ser modificável pela experiência [observação: é evidente que aqui ninguém está afirmando que estas modificações causadas pela experiência são transmitidas hereditariamente]. O cérebro pode, como resultado, lidar com novos perigos aproveitando-se das maneiras de responder finamente-sintonizadas pela evolução. Tudo o que ele precisa fazer é criar uma substituição sináptica onde o novo estímulo pode entrar no circuito usado pelos estímulos pré-arranjados.
[...]
Por meio da minha pesquisa passada, eu fiz uso do fato que o sistema de medo é capaz de aprender e de armazenar informação sobre estímulos que avisam sobre danos corporais iminentes e outros perigos. Recentemente, porém, meu laboratório voltou suas pesquisas para as maneiras pelas quais a aprendizagem do medo ocorre em nível sináptico.
[...]
A maioria dos sistemas no cérebro são plásticos, ou seja, modificáveis pela experiência, o que significa que as sinapses envolvidas são modificadas pela experiência. Mas, como o exemplo do medo demonstra, aprendizagem não é a função a qual estes sistemas foram originalmente elaborados a realizar. Eles foram construídos para realizar realizar certas tarefas (como detectar perigo, encontrar comida e parceiros, escutar sons, ou movimentar um membro na direção de um objeto desejado). Aprendizagem (plasticidade sináptica) é apenas uma função que ajuda estes sistemas a realizar suas tarefas mais eficientemente.
[...]
A capacidade inata das sinapses para gravar e armazenar informação é o que permite aos sistemas codificar experiências. Se as sinapses de um dado sistema no cérebro não podem mudar, este sistema não terá a habilidade de se modificar pela experiência e de manter um estado modificado. O resultado disto é que o organismo não será capaz de aprender e lembrar-se por meio do funcionamento daquele sistema. Toda aprendizagem, em outras palavras, depende da operação das capacidades de aprendizagem geneticamente programadas [da espécie]. Aprendizagem envolve a nutrição da natureza*.”
LeDoux, Joseph. Synaptic Self -
How our brains become who we are
.
New York : Penguim, 2002. p. 6-9.

Esta não é apenas uma das melhores e mais brilhantes explicações sobre a aprendizagem a que eu já tive acesso nos meus estudos sobre Psicologia, como também é uma explicação que permite um insight muito importante sobre a natureza daquilo que temos de mais íntimo, daquilo que nos define enquanto indivíduo: aquilo que chamamos de Self.
A importância de pesquisas como esta transpassam a neurociência e permeiam alguns dos conceitos fundamentais das escolas da Psicologia e da Filosofia. Personalidade, Ego, Eu, o que sou, para onde vou, existência, mente vs. corpo, etc - tudo isso começa, finalmente, a aproximar-se da ciência a medida que o estudo do cérebro e de seus processos fica mais viável.
Lembrando uma citação de um livro do Oliver Sacks que eu havia feito anteriormente:
“Por exemplo, em um paciente sob meus cuidados, uma trombose repentina na circulação posterior do cérebro causou a morte imediata das várias partes visuais do cérebro. Dali por diante, este paciente tornou-se totalmente cego, porém sem o saber. Ele parecia cego, mas não se queixava. Perguntas e exames mostraram, sem sombra de dúvida, que ele estava central ou corticalmente cego, mas que também perdera todas as suas imagens ou memórias visuais, que as perdera totalmente, embora não tivesse idéia de perda alguma. De fato, ele perdera a própria idéia de visão e não só era incapaz de descrever algo visualmente, como, também, ficava confuso quando eu usava as palavras enxergar e luz. Em essência, ele se tornara um ser não visual. Todo seu tempo de vida como pessoa que enxergava, seu tempo de visualidade, fora efetivamente roubado. De fato, toda sua vida visual fora apagada - e apagada permanentemente - no momento do ataque.”
Sacks, Oliver. O homem que confundiu sua
mulher com um chapéu. São Paulo :
Companhia das Letras, 1997. p. 56-7.

A plasticidade dos sistemas cerebrais permite que eles gravem e retenham informações acerca de um único evento de forma distribuída e especializada: a visão ameaçadora de uma cobra em uma caminhada pelo mato irá gravar informações no sistema límbico, nos sistemas visuais, etc. Ao lembrarmos de tal evento, iremos evocar - ou decodificar - informações de diferentes partes do cérebro e reconstruir a cena. Como esta provavelmente seria uma cena emocionalmente carregada, é possível que a sua memória venha acompanhada de uma riqueza incomum de detalhes, como cheiros - do córtex olfativo, um dos mais importantes para a memória nos mamíferos, sons - do córtex auditivo, imagens e sensações. Isso sem mencionar a ativação das áreas corticais dos símbolos de linguagem... Não apenas reproduzimos a cena, mas pensamos nela na forma de palavras como: “Eu estava andando pelo mato e, ao me deparar com uma cobra, senti medo.” - agora ao que importa: quem é este eu? como ele surge?
Da mesma forma que as demais lembranças, a medida que sentimos, que sentimos a nossa presença no ambiente em relação a presença dos demais objetos, quando nos diferenciamos dos demais objetos, etc. Construímos uma história mnemônica a respeito de nós mesmos, uma história individual, particular, repleta de sensações que são - e sempre serão** - únicas a nós mesmos. Assim construímos uma personalidade, uma identidade, e assumimos papéis e interagimos em nossas relações objetais.
Talvez, para a Psicologia, em especial para os estudos de personalidade, uma das coisas mais importantes que esta pesquisa trás, é quanto a plasticidade do Self: este seria composto por núcleos não mais imutáveis do que aqueles que são funcionalmente determinados pela genética, sendo que sua capacidade de atualização seria limitada apenas pela capacidade biológica de modificações nos sistemas cerebrais correspondentes.
A idéia de um determinismo psíquico, na qual as pessoas estão condenadas a viver em suas neuroses, na qual os rótulos psiquiátricos devem ser carregados como cruzes por seus portadores, fica seriamente ameaçada - o que é muito bom. Viva a plasticidade cerebral.

* nurture vs. nature - o que é adquirido pela experiência e o que é geneticamente determinado, as expressões fenotípicas e as bases genéticas, etc...
** Até inventarem um autocerebroscópio - hehehehe...

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