sexta-feira, 6 de março de 2009

Ser Ninguém - Thomas Metzinger

"Este livro é sobre consciência, o self fenomenológico e a perspectiva de primeira pessoa. Sua principal tese é de que não existem tais coisas como selves no mundo: ninguém nunca foi ou teve um self. Tudo o que sempre existiu foram modelos de self conscientes que não podem ser reconhecidos como modelos. O self fenomenológico não é uma coisa, mas um processo -- e a experiência subjetiva de ser alguém emerge se um sistema consciência de processamento de informação opera sob um modelo de self transparente. Você é tal sistema neste exato momento, enquanto lê estas sentenças. Por não ser capaz de reconhecer o seu modelo de self como um modelo, ele é transparente: você olha diretamente através dele. Você não o vê, mas vê com ele. Em outras palavras mais metafóricas, a afirmação central deste livro é que enquanto você lê estas linhas você constantemente confunde a si com o conteúdo do modelo de self atualmente ativado no seu cérebro." (TMZ, 2004, p.1)

Assim começa o livro Being No One, do Thomas Metzinger, um filósofo contemporâneo alemão que propõe a não-existência de um self individual enquanto coisa, apenas enquanto um processo. De certa forma ele está em concordância do Daniel Dennett, na negação do self e dos qualia e na idéia de um self emergente,
Perguntas: Se há um 'si' para ser confundido, o que implica um alguém, quem é este alguém? Quem exerga através do modelo transparente? Pode um processo dar origem à uma coisa? Fenomenologia -- a interação de coisas pode dar origem a uma nova coisa com qualidades que não estavam presentes nas coisas que a originaram... Adoro livros que, logo de cara, no primeiro parágrafo, conseguem nos levar a tantas perguntas.
Acho que estas perguntas são relevantes, uma vez que as própria forma como esta breve introdução foi escrita - e traduzida por mim do original em inglês - nos leva à elas.
"A consciência, o self fenomenológico e a perspectiva de primeira pessoa são fenômenos representacionais fascinantes que possuem uma longa história evolucionária, uma história que eventualmente levou à formação de sociedades complexas e da assimilação cultural de nossa própria experiência consciente. Para muitos pesquisadores em neurociência cognitiva está claro, agora, que a perspectiva de primeira pessoa deve ter sido um elo decisivo entre a evolução biológica e a evolução cultural. No âmbito filosófico, por outro lado, é comum dizer coisas como "A perspectiva de primeira-pessoa não pode ser reduzida à perspectiva de terceira-pessoa!" ou elaborar argumentos tecnicamente complexos demonstrando que alguns fatos irredutíveis de primeira-pessoa existem. Mas ninguém nunca perguntou o que é a perspectiva de primeira-pessoa para começar. É isto que me proponho a fazer. Oferecer uma análise representacionalista e funcionalista do que é a perspectiva de primeira-pessoa experimentada conscientemente." (TMZ, 2004, p. 1)

Ainda em relação ao âmbito filosofico, Metzinger escreve: "O objetivo epistêmico deste livro consiste em descobrir se a experiência consciente, em particular a experiência de ser alguém, resultante da emergência de um self fenomenológico, pode ser convincentemente analisado em níveis subpessoais de descrião. Um segundo objetivo relacionado consiste em descobrir se, e como, nossas intuições cartesianas - aquelas intuições profundamente entranhadas que nos dizem que a acima mencionada experiência de ser um sujeito e um indivíduo racional não pode jamais ser naturalizada ou explicada de forma reducionista - estão, em última instância, enraizadas em uma estrutura representacional mais profunda de nossas mentes conscientes. Intuições devem ser abordadas com seriedade." (TMZ, 2004, p. 2)

Magritte - The Son of Man
O que Metzinger aponta, de forma clara a seguir, é que as afirmações advindas das novas descobertas nas áreas científicas, em especial nas neurociências, não precisam, necessariamente, levar a conclusões que estejam de acordo com as nossas intuições enraizadas. Na psicologia, podemos nomear tal fenômeno, quando são apresentadas à uma pessoa evidências contundentes de uma realidade que vai de encontro às suas mais fortes crenças, como dissonância cognitiva. Corretamente, Metzinger afirma que [estas novas descobertas] "irão nos apresentar um novo tipo de autoconhecimento que muitos de nós simplesmente não poderá acreditar." (TMZ, 2004, p. 2)
Metzinger fala do valor do pensamento indutivo e do insight, quando calcados em dados sólidos e bem estudados, mas aponta para os riscos de grandes erros conceituais que podem advir da falta de sistematização e prova na utilização das conclusões obtidas desta forma. Um exemplo que me ocorre, talvez um dos exemplos máximos de ambas as faces da abordagem indutiva, é a obra de Sigmund Freud. Enquanto tal obra é resultado de uma mente brilhante e de grande conhecimento na ciência de sua época, e representa um enorme avanço no estudo da saúde mental, tão grande que tem impacto sobre as mais diversas áreas do conhecimento humano, ela também é responsável por um atraso e uma resistência na aceitação de evidências posteriores que não confirmam seus pressupostos.
Por outro lado, aponta Metzinger, a "escolástica analítica", que constitui uma das bases mais sólidas da filosofia da mente contemporânea, também possui seus riscos, nos momentos em que ignora a experiêcia fenomenológica de primeira-pessoa e a análise empírica de terceira-pessoa na elaboração de ferramentas conceituais. (TMZ, 2004, p. 3)
"Se a consciência e a subjetividade fossem apenas analisanda [aspectos conceituais], então poderíamos resolver todos os problemas filosóficos relacionados à consciência, o self fenomenológico e a perspectiva de terceira-pessoa, apenas modificando a maneira como falamos. Teríamos de fazr lógica modal e semântica formal, e não neurociência cognitiva. A filosofia seria uma disciplina fundamentalista que poderia decidir sobre a verdade e a falsidade de afirmações empíricas por meio, apenas, do argumento lógico. Eu não acredito que deva ser assim." (TMZ, 2004, p. 3)

Como Metzinger, acredito que a consciência e a subjetividade não devam ser tomadas apenas como analisanda, mas sonho com o dia que não haverá contradições entre a lógica modal, a semântica formal e a neurociência cognitiva, os conceitos de mente e vida mental. Não há como ler Wittgenstein e Skinner e não perceber as contradições que surgem a partir de nossas intuições que invadem e se reforçam por meio da linguagem. Mas tal mudança não irá ocorrer rapidamente, uma vez que, além de novas descobertas científicas, também depende de grandes transformações socioculturais.
Uma das perguntas que o livro propõe e que mais me interessam, neste momento, é a seguinte: "Qual é a forma mais simples de conteúdo fenomenológico? Existe algo como "qualia" no sentido clássico da palavra?" (MTZ, 2004, p. 8)
Para Metzinger, o conceito de "quale" sofreu uma "inflação semântica", vindo a ser utilizado de forma cada vez mais vaga em relação aos seus pressupostos clássicos e, portanto, gerando equívocos interdisciplinares e na própria filosofia da mente. "Desde Aristóteles até Peirce, uma grande variedade de diferentes significados e percursores semânticos apareceram." (MTZ, 2004, p. 66) Enquanto, obviamente, isto constitui um problema, como Metzinger aponta, por outro lado a existência deste problema, tão flagrante pode apontar para uma solução. Talvez a questão não seja eliminar ou negar a existência dos qualia, mas admitir que o conceito clássico, em especial nas palavras de Lewis e Nagel, precisa ser retomado e "afinado" às atuais descobertas científicas. Esta é a minha opinião, pois acredito que se há experiência consciente, um observador consciente - seja um observador consciente meramente um observador que levanta questões sobre aquilo que é observado e infere conclusões -, se há uma experiência de primeira-pessoa, então o todo desta experiência é pessoal e intransferível pelos meios da linguagem, pelos meios que temos hoje à disposição (ainda não temos um autocerebroscópio e nada indica que teremos um tão cedo...). Digo isso pois acredito que as "representações mentais" possuem suas contrapartes bem físicas em configurações ou redes neuronais, que se relacionam com outras redes, e que são ativadas em conjuntos diferentes, de forma bastante dinâmica e complexa. Acredito que tais redes são plásticas, sujeitas à mudanças com experiências advindas do ambiente e do próprio uso - pensamento introspectivo, por exemplo. Tais redes, e as representações que delas emergem, nossos próprios pensamentos, são muito mais complexos do que uma impressão digital e, possívelmente, muito mais complexos estruturalmente do que nossas próprias moléculas de DNA. Não acredito que existam dois seres humanos com suas respectivas redes de sinapses que sejam exatamente iguais para representar um conceito tão simples quanto, por exemplo, a tipografia da letra 'A'. Mas este foi apenas meu discursinho para defender a existência dos qualia... Voltando ao Metzinger...
"[...] Atualmente é importante deixar claro sobre o que se está falando [quando se fala sobre qualia]. O locus clássico para a discussão no século XX pode ser encontrado em Clarence Irving Lewis. Para Lewis, qualia eram universais subjetivos:
"Existem características qualitativas reconhecíveis de algo, que podem ser repetidas em diferentes experiências, e são portanto, deste modo, universais; eu posso chamá-las de "qualia". Mas, embora tais qualia sejam universais, no sentido de serem reconhecidas da experiência de um [indivíduo] para outro, elas devem ser distinguidas das propriedades dos objetos... O quale é diretamente intuído, apreendido, e não é sujeito à nenhum erro possível por é puramente subjetivo. A propriedade de um objeto é objetiva; a atribuição deste é um julgamento, que pode estar errado; e o que a predicação de suas conclusões é algo que transcende o que poderia ser obtido em qualquer experiência isolada." (C. I. Lewis 1929,p. 121 (apud TMZ, 2004, p.67)

Para Lewis está claro, desde o início, que nós possuímos critérios de identidade subjetiva para os qualia: eles podem ser reconhecidos de um espisódio experiêncial para outro [por exemplo, reconhecemos a cor vermelha numa maçã, numa camiseta, em um carro ou nos lábios pintados de uma garota; ainda assim, sabemos sem sombra de dúvida, que se trata da cor vermelha]. Também, os qualia formam o núcleo intrínseco de todos os estados subjetivos. Este núcleo é inacessível à qualquer análise relacionar. Portanto é inefável, pois seu conteúdo fenomenológico não pode ser transportado ao espaço público de sistemas de comunicação [foi o que eu falei ali sobre os limites da linguagem, coisa que Wittgenstein já falava a muito tempo também]. Apenas afirmações sobre propriedades objetivas podem ser sujeitos à falseabilidade [óbvio, imagina uma pergunta numa prova: "o que você acha da matéria?" - é uma pergunta cuja a resposta pode ser corrigida?]. Os qualia, contudo, são propriedades fenomenológicas subjetivas:
Os qualia são subjetivos; eles não possuem nomes no discurso ordinário mas são indicados por algumas circulocuções tais como "se parece com"; eles são inefáveis, uma vez que eles podem ser diferentes em duas mentes com nenhuma possibilidade de descoberta de tal fato e nem nenhuma inconveniência necessária ao nosso conhecimento dos objetos ou suas propriedades [ver "O Besouro de Wittengestein em Investigações Filosóficas]. Tudo que pode ser feito para designar um quale é, assim falando, localizar este na experiência, ou seja, designar as condições de sua recorrência ou outras relações deste. Tal localização [contextualização] não abrange o quale em si; se este pudesse ser reduzido da rede de suas relações, na total experiência do indivíduo, e substituído por outro, nenhum interesse social ou interesse de ação poderia ser afetado por tal substituição [aqui é onde, acredito eu - o autor deste blog, este conceito filosófico esbarra com a ciência]. O que é essencial para a compreensão e para a comunicação não é o quale como tal mas o padrão e suas relações estáveis em experiência que são implícitamente previstas quando são tomadas como sinal de uma propriedade objetiva. (C. I. Lewis 1929, p. 124 ff.)
Compreendo que um dos problemas encontrados pelos filósofos contemporâneos em relação aos qualia é a afirmação de que estes são inefáveis. Algo inefável escapa ao conhecimento objetivo da ciência. Mas não são os pensamentos, em toda a sua riqueza enquanto no reino de nossas mentes - cérebros -, inefáveis? Por mais que eu me utilize da linguagem ou de qualquer outra mídia, seja pintura, música, etc, para transferir aquilo que se passa, por vezes na forma de uma narração, por vezes na forma de imagens e movimentos, em geral de ambas as formas, em minha mente, o todo não poderá ser transferido. Ninguém nega a existência dos pensamentos tais como são, pois é uma experiência comum para todos nós. Nós sonhamos, elaboramos, discursamos internamente. Tal atividade não pode ser observada em detalhes, nem com a tecnologia mais avançada que dispomos. Podemos observar as atividades metabólicas do cérebro enquanto alguém fala de amor, mas não podemos visualizar na tela as lembranças que emergem de tal discurso e suas relações. Os qualia são - ou deveriam ser tomados como - a matéria ou os blocos constituintes de tais episódios.
Até aqui, penso que a grande contradição que surge é justamente quando Lewis esbarra na ciência, afirmando que um quale de um indivíduo poderia ser substituído pelo quale de outro indivíduo sem que nada se modificasse. Segundo entendo, esse deslize é compreensível dada a época em que Lewis elaborou este conceito e dada a sua formação e área de atuação. Lewis era filósofo e, como é de se esperar, muito mais proeficiente nas relações da filosofia com a lingüística do que nas relações da filosofia com as neurociências, que em 1929 ainda eram bastante incipientes se comparadas ao que são hoje. Na lingüística, por meio de ferramentas filosóficas, se buscam os significados essenciais aos objetos... Como na pergunta: "Se removermos uma perna de uma cadeira, ela continua sendo uma cadeira? E se removermos duas pernas e o encosto? Até que ponto uma cadeira é suas partes constituíntes?" (ver o Barco de Teseu, por exemplo - se todas as partes de um barco forem substituídas ao longo dos anos de manutenção que este sofrer, será o barco as peças originais que agora formam uma pilha de lixo ou continuará sendo o barco que, agora, não possui nenhuma de suas peças originais?) - Bom, isso é uma coisa, mas não se relaciona com o aquilo que realmente interessa aos qualia, mesmo que isso entre em contradição com o elaborador da teoria! Se Lewis visse os qualia como redes de neurônios, configurações sinápticas, e não como significados de lingüagem, ele não poderia dizer que a substituição de um quale por outro - de mesmo propósito mas de outrém - seria indiferente. Poderia, intuitivamente, ser indiferente, para a linguagem, afinal entendemos o que qualquer fulano quer dizer quando diz "vermelho". Por outro lado, se entendermos que ao falarmos vermelho não estamos realmente nos referindo ao que é objetivamente a cor vermelha, mas a sua representação mental, na forma de uma configuração sináptica de uma rede de neurônios em algum lugar de nosso cérebro, que foi criada por meio da experiência, e que as experiências que levaram a tal configurações não podem ser idênticas para dois seres humanos diferentes - duas pessoas não podem ocupar o mesmo lugar no tempo e espaço - então haveria diferenças sim e, mais do que isso, esta compreensão também questiona a igualdade entre os significados na própria linguagem. Pode ser que sejam iguais o suficiente para serem compreendidos, mas definitivamente acredito que não sejam idênticos de uma pessoa para outra. Quanto a possibilidade de tal diferenciação na "essência" que utilizamos ao nos referirmos aos objetos, cito a esquizofrenia. Na esquizofrenia a diferenciação é tamanha que a negociação da comunicação se torna difícil, se não inviável.
Metzinger elabora mais a sua afirmação de que qualia não existe na continuação, sob o título de "Why qualia don't exist?" na página 69. Infelizmente não poderei argumentar nada a respeito pois tal parte está indisponível no preview oferecido pelo Google Books. ):
Ainda que eu discorde de alguns posicionamentos do Metzinger, o que pude ler de seu livro é realmente genial. Eu preferiria uma abordagem um pouco diferente à alguns problemas propostos, mas certamente seguindo uma metodologia similar - uma metodologia, adotada por Metzinger - que é impecável e essencial ao século XXI.
Recomendo este livro e pretendo adquirí-lo tão logo me sobrem uns dinheiros... (:

Um comentário:

Nuccia Gaigher disse...

Muito grata por sua visita ao meu espaço aqui na net.
Desejo muito sucesso a você e seus/nossos leitores,rs.
Abraços fraterno.